São Paulo, quarta-feira, 26 de fevereiro de 1997
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O laranja, o motorista e o vírus PB

ELIO GASPARI

Deve-se aos economistas Ricardo Paes de Barros, Rosane Mendonça e Marcelo Neri, do Instituto de Pesquisa e Economia Aplicada (IPEA), uma poderosa contribuição para a melhoria da qualidade do estudo sobre o tipo de sociedade que se constrói no Brasil. O jornalista Fernando Dantas revelou as linhas básicas de seus estudos sobre a distribuição da renda nacional, e delas resultam, entre outras, duas constatações:
1) Pobreza é uma coisa. Desigualdade é outra. O Brasil tem muita pobreza, mas é a desigualdade que faz de sua sociedade uma das mais injustas do mundo.
2) A desigualdade está muito mais no andar de cima do que no de baixo. Se fosse possível retirar os 10% de ricos que moram no alto da pirâmide da distribuição de renda, o perfil da sociedade brasileira ficaria muito parecida com o da americana. "A desigualdade no Brasil está muito mais no super-rico do que no superpobre, mas esses super-ricos somos nós mesmos", diz Paes de Barros, o PB, como o chamam os colegas.
Paes de Barros acredita que um dos fatores determinantes dessa desigualdade esteja na educação. Contudo, coloca um grão de sal nessa idéia: "Com os dados disponíveis hoje, não dá para saber se tem mais alguma coisa disfarçada de educação". Algo como um vírus social que se transmutaria em diploma, sobrenome, endereço ou cor.
Trata-se de uma velha discussão, à qual se trouxeram novas análises estatísticas e, sobretudo, novas perguntas. Numa contribuição para a busca do código desse vírus, aqui vão duas histórias, ambas atuais. Uma mostra como funcionam as coisas no andar de cima. A outra, no andar de baixo.
No andar de cima está Ibraim Borges Filho, o IBF da empresa que esfriava o dinheiro das roubalheiras com os títulos públicos de Santa Catarina. É um homem moço, vive bem, tem amigos no mercado financeiro, e esses amigos tinham amigos no governo de Paulo Afonso Vieira, que por sua vez tinha amigos no Banco Central e no Senado. No ano passado, servindo de laranja a larápios, ganhou R$ 200 mil em menos de um mês.
As transações da IBF eram ostensivamente fraudulentas. Foram denunciadas em novembro passado. Nenhum órgão do governo mexeu um só dedo. Descobriu-se que a empresa não pagava imposto de renda, nem sequer conta de água. Nada. Procurado pela imprensa, Ibraim Borges Filho fechou-se: "Não tenho nada a declarar".
Quando se esboçou a formação de uma CPI do Senado para investigar as emissões de títulos públicos estaduais, o presidente do Banco Central, Gustavo Loyola, advertiu FFHH para o perigo de a lama respingar no governo. Preferia que não houvesse investigação daquilo que ele próprio deixara de investigar.
Foram necessários três meses e uma CPI para que Ibraim Borges Filho contasse aos senadores como funcionava a roubalheira. Ele ganhou R$ 200 mil. Quem disser que as comissões e jabaculês dos títulos públicos dos Estados e municípios pode chegar a R$ 2 bilhões pode errar, mas não estará exagerando.
Até agora o Estado brasileiro, de acordo com as leis e os critérios de justiça, nada conseguiu fazer de concreto contra Ibraim Borges Filho. Ele continua com todos seus papéis e contas em ordem.
Agora a história do andar de baixo.
É a de um dono de um utilitário Towner, homem de 35 anos, com casa na periferia do Rio de Janeiro e boa escolaridade. Mais ou menos à época da denúncia dos títulos de Santa Catarina, juntou algum dinheiro com a ajuda da família, comprou o veículo e foi para as cercanias da Central do Brasil catar passageiros. Chegou a pagar a primeira das 24 prestações de sua dívida.
No dia 1º de fevereiro um policial apreendeu-lhe o carro. Como era uma sexta feira, esperou a semana seguinte para batalhar a liberação do carro. Perdeu um dia tentando descobrir a exata repartição onde deveria tratar o assunto. Perdeu outros três esperando. Uma semana depois de ter ficado sem o carro, recebeu-o de volta. Junto veio a conta: R$ 109 de multa e R$ 142 por sete dias de hospedagem da Towner na garagem pública.
Tem mais. Ficou sem a carteira de habilitação e, portanto, não pode trabalhar. Quanto tempo terá que esperar? No mínimo dois meses. No máximo, seis. Por quê? Por nada. Esse é o tempo que uma carteira leva para sair da mão de um policial e chegar de volta ao dono.
No caso de Ibraim Borges Filho a máquina do Estado é lenta, incrédula e cautelosa. No do motorista da Towner é rápida, fulminante e impiedosa. Em nenhum dos dois casos se está praticando leniência ou arbitrariedade explícitas. Está tudo nos conformes, os conformes de um esquema que funciona para mandar dinheiro ao andar de cima e tirar trabalho do andar de baixo.
É o vírus social que Paes de Barros julga conveniente estudar.

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