São Paulo, sábado, 1 de março de 1997
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Rilke e o futuro da esquerda

RUBENS RICUPERO

"O futuro habita em nós bem antes de acontecer." O lema do recém-concluído congresso do PDS, ex-Partido Comunista Italiano, não foi tirado de Marx, Engels ou Lenin. Seu autor é Rainer Maria Rilke nas "Cartas a um Jovem Poeta", e só isso, mais ainda do que o sentido da frase, já sugere a direção que o maior partido da Itália se apresta a tomar.
O evento definidor da reunião foi o apoio do líder Massimo D'Alema à reforma do Estado social, o que lhe valeu um confronto com o presidente da central sindical e a acusação de traidor. Tendo chegado ao poder após 50 anos de espera, os ex-comunistas vêem sua frustração prolongada, pois a coligação de governo é precária por depender dos votos da Refundação Comunista. Aliada incômoda, esta não aceita os cortes na previdência social, necessários para que o país possa fazer parte do primeiro grupo da moeda européia, símbolo de prestígio e respeitabilidade.
Daí a tentação de arriscar a ruptura com os radicais, com a esperança de atrair o eleitorado moderado e realizar o sonho de converter o PDS no "centro vital" da política italiana. Nessa hipótese, até um "compromisso transparente e aberto" com o líder da direita, Berlusconi, já lhe foi oferecido.
Aplaudido por este último no Congresso e ungido pelo "Financial Times" como único político italiano de envergadura de estadista, D'Alema se descobre empurrado pela mesma engrenagem que, antes dele, impeliu Mitterand e Felipe González para um centro cada vez mais à direita devido aos imperativos inexoráveis da unificação européia.
Não que faltem ao chefe do PDS argumentos válidos. Como, por exemplo, quando opõe o interesse de milhões de dependentes do "trabalho negro" ou informal à recusa corporativa dos sindicatos em flexibilizar o mercado de trabalho de maneira a gerar empregos legais.
O raciocínio não difere do desafio de Clinton ao perguntar a seus críticos se preferiam o desemprego ou um trabalho de menor salário e sem estabilidade.
O paralelo põe em evidência uma realidade hoje comum à Europa, aos EUA e ao mundo: o estreitamento das opções, o desaparecimento das alternativas radicais. Não mais existe lugar para modelos antípodas que se negam e se excluem totalmente, comunismo e anticomunismo, economia estatal e de mercado. Não há mais preto nem branco, apenas infinitas gradações de cinza.
Não impede que o amontoamento de todos no mesmo espaço do centro se faça a preços diferentes. Para a direita, o problema é "modernizar-se" politicamente e renunciar ao autoritarismo. Economicamente, contudo, ela continua no lugar onde sempre esteve. Já a esquerda é obrigada a desembaraçar-se de bagagem muito maior, da luta de classes à ditadura do proletariado, passando pela estatização da economia. Nesse processo, não surpreende que corra mais risco de perder a alma do que a direita.
Ou será que, no fim das contas, a esquerda já perdeu de vez a alma, se a entendermos como a opção preferencial pela classe operária? Mas poderia ser de outra forma? Nas sociedades pós-industriais, os operários e seus sindicatos deixaram de ter a posição de maioria que ocupavam em tempos de Marx. Não faria, assim, mais sentido alargar o apelo da esquerda a todos os trabalhadores, formais ou não, aos empregados dos serviços e do comércio, funcionários públicos, intelectuais, ao conjunto dos que vivem de salário, como tenta fazer D'Alema? Não seria essa a chave de nova posição hegemônica, a fim de chegar ao poder? No caminho, haverá o risco de ser chamado de traidor, mas que importa? Como diria Deng Xiaoping: "É preciso abrir as janelas; tanto pior se entrarem alguns mosquitos."
A obsessão do ex-comunismo é de ser aceito como parte da normalidade, de fazer esquecer seu passado de bicho-papão revolucionário. Tende, assim, a silenciar ou minimizar as divergências com o sistema vigente. É por isso que hoje a contestação e a crítica aos excessos do mercado e da globalização não vêm dos partidos de esquerda, mas de personalidades e instituições sem interesses eleitorais: religiosos, a Igreja Católica, jornalistas e escritores, financistas arrependidos como Soros. É significativo que o "último dos liberais" (no sentido americano), Robert Reich, acabou por deixar o governo Clinton com uma denúncia contra a desigualdade crescente.
O dilema da esquerda é conciliar a eficácia na luta pelo poder com a preservação de uma diferença que constitui sua razão de ser. Mas em que se diferencia a esquerda da direita ao enfrentar, uma vez no poder, os flagelos deste fim-de-século, o desemprego e a desigualdade crescentes? Para não sair da Itália, é Bobbio quem nos responde. Diante desses males, a direita dá de ombros e se resigna a aceitá-los como fruto inevitável de um determinismo econômico impossível de mudar. Em contraste, a esquerda, para ser fiel a si mesma, tem o dever de reagir para transformar o mundo, subverter o "status quo", a fim de reduzir a injustiça e a desigualdade. Poderá, porém, guardar sua alma se acentuar a conformidade com o estado de coisas para melhor ganhar o mundo? Nesse caso, seu destino pode bem vir a ser o anunciado no Evangelho: "Se o sal deixar de salgar, para que serve se não para ser jogado fora?"

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