São Paulo, sábado, 1 de março de 1997
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Alca: o inferno são os outros...

JOÃO MELLÃO NETO

Fim de ano em Miami é uma das aspirações maiores de qualquer latino-americano médio, mormente o brasileiro. Em lance de grande inspiração, foi justamente para lá que o presidente Clinton convidou todos os chefes de Estado do continente (com exceção, é óbvio, de Fidel Castro) para uma grande confraternização no final de 1994.
Clinton foi impecável. Acenou a todos os seus maravilhosos hóspedes com o ideal de uma Nova América, com direito a tudo aquilo que Thomas Jefferson pregava: liberdade, igualdade e busca da felicidade.
Sua proposta era bastante objetiva. A criação de uma área de livre comércio das Américas, a ser concluída em 2005. Como sempre ocorre com as idéias nobres e grandiosas, ninguém se furtou a subscrevê-la. Até porque as utopias sempre foram sedutoras.
O problema é que Bill estava falando sério. Algo que os governantes dos demais países só perceberam quando as sisudas comitivas ianques começaram a desembarcar em seus palácios com agendas, pautas de contratos e cronogramas de implementação.
Ora, é óbvio que nós, latino-americanos, com o nosso natural desprendimento, jamais nos negaríamos ao grande sacrifício de auxiliar a suprir o insaciável e milionário mercado dos EUA. Agora, esses "gringos" virem para cá, vender seus produtos em igualdade de condições, já é querer abusar! O que antes era chamado de cooperação passou a ser tachado pela nossa intelectualidade de "neo-imperialismo"...
Até aí, nada a estranhar. O mesmo está acontecendo no seio da União Européia. Por ocasião da assinatura do Tratado de Maastricht, havia só sorrisos. Uma Nova Europa estava nascendo! Agora, na dura hora de implementação das medidas necessárias à unificação, as rivalidades seculares voltam à tona.
Não se trata aqui de se posicionar contra ou a favor da Alca. Com a irreversível tendência da formação de grandes blocos comerciais no planeta, gostemos ou não, quem ficar de fora pode banir de seu dicionário o vocábulo "exportações". O que incomoda é a farisaica semântica adotada.
É óbvio que o Brasil, como nação mais industrializada da América Latina, deve adotar suas cautelas antes de se entregar de corpo e alma à Alca. Afinal, outras nações vizinhas podem se dar ao luxo de aderir incondicionalmente, uma vez que não têm nada a perder. Mas alegar que o Mercosul nos basta ou que o mercado latino-americano é essencial à sobrevivência do Grande Capital dos EUA é carregar demais nas tintas.
O PIB do Nafta, liderado pelos "gringos", é de cerca de US$ 7,5 trilhões. A Apec, bloco de Ásia e Pacífico, menos formal, é certo, mas do qual os norte-americanos participam, possui um mercado equivalente ao dobro do do Nafta. Já nosso orgulhoso e impávido Mercosul, em que alegamos pretender alicerçar a nossa auto-suficiência, não chega sequer à casa do trilhão. Valorizemos nosso passe, sejamos uma noiva difícil, mas devagar com o charme. Corremos sério risco de ficar para titia.

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