São Paulo, segunda-feira, 3 de março de 1997
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Economista alerta para o "social dumping" na Alca

CLÁUDIA PIRES
DA REPORTAGEM LOCAL

O Brasil só conseguirá chegar a um acordo com os EUA e ingressar na Alca (Área de Livre Comércio das Américas) se aceitar discutir os direitos trabalhistas.
A opinião é do economista britânico Philip Jennings, 43, secretário-geral da Fiet mundial, organização sindical que representa 12 milhões de trabalhadores de 440 sindicatos espalhados por mais de 120 países.
Jennings esteve em São Paulo na semana passada, durante encontro que reuniu sindicalistas de todas as partes do mundo.
Um dos pontos debatidos no encontro foi a inclusão da chamada cláusula social no processo de integração dos países da América. A questão tem gerado desacordo entre os governos brasileiro e norte-americano nas negociações sobre a Alca.
Essa cláusula concederia permissão para que um país aplicasse sanções comerciais contra a importação de produtos mediante a identificação de algum abuso nas relações de trabalho. O governo brasileiro considera a medida protecionista.
Segundo ele, a integração dos países da América é inevitável, mas está "emperrada por fortes oposições políticas."
O economista atua na área sindical há 20 anos. Foi eleito secretário-geral da Fiet em 1989 e reeleito duas vezes.
Desde 1990, é responsável pelos assuntos trabalhistas ligados à integração internacional.
A seguir, entrevista concedida por ele à Folha, durante sua passagem pelo Brasil.
*
Folha - Como o sr. analisa o atual processo de integração econômica das Américas?
Philip Jennings - É um processo inevitável. O "espírito geral" entre os países é de encorajar a união em blocos econômicos. O processo está se desenvolvendo muito rápido e gerando acordos rapidamente. Esse ritmo deve continuar. Estamos vendo o desenvolvimento da Alca, do Nafta e do Mercosul. Isso estimula o desenvolvimento e crescimento de todos os países. Mas precisamos estar atentos para os problemas.
Folha - Quais seriam esses problemas?
Jennings - A principal questão é que os direitos humanos e sociais ainda não foram devidamente discutidos. Dentro dessa negociação, há pontos muitas vezes esquecidos, como a questão da discriminação racial e social e dos direitos trabalhistas. O que esperamos dos líderes políticos é que entendam que esse tipo de integração não pode excluir a dimensão social. Não é aceitável e nem justo que se faça um acordo financeiro, comercial, sobre investimentos e política tarifária e se esqueça de direitos sociais básicos.
Folha - Porque o sr. acha que os países latino-americanos querem evitar discutir esse ponto?
Jennings - Na verdade, os líderes políticos não têm coragem para isso. Mas não há como chegar a um acordo sobre blocos sem levantar essa questão.
Folha - O governo norte-americano vem batendo forte na tecla da inclusão da cláusula social no processo de negociação da Alca, por exemplo. Os governos dos países latino-americanos, porém, acreditam que isso é apenas uma forma de disfarçar medidas protecionistas. O sr. acredita nisso?
Jennings - Não. Isso está sendo usado como desculpa por esses países para que não se discutam as questões trabalhistas. Nós não aceitamos essa mentira que foi criada e que induz as pessoas a pensar que a inclusão das discussões sobre a questão social poderá gerar problemas econômicos para os países em desenvolvimento. Isso não existe. Não é possível que os governantes ignorem as tensões sociais que estão acontecendo em todo o mundo.
Folha - Mas o governo brasileiro, por exemplo, teme que essa cláusula venha acompanhada de sanções econômicas.
Jennings - Nós não defendemos as sanções. Mas é preciso negociar. O que acontece atualmente é apenas uma oposição política e que está barrando o acordo. E um acordo que exclua os direitos trabalhistas pode ser muito perigoso.
Folha - Em que sentido?
Jennings - Existe um perigo real de "social dumping". Esse não pode ser o espírito destes acordos. Quando você faz um acordo como esses observando apenas o lado econômico e esquecendo o social, você corre o risco de ter grandes instabilidades sociais.
Folha - Essas instabilidades poderiam gerar desemprego?
Jennings - Sim, mas essa questão é mais ampla. Durante o processo de globalização é preciso estar atendo para as atitudes das empresas multinacionais, que tendem à redução de pessoal para solucionar problemas. Os governos têm que oferecer condições para que esses empregados possam ser recolocados no mercado, senão pode haver perigo. Na formação do Nafta, por exemplo, muitos trabalhadores foram afetados.
Aqui, durante essa conferência, os norte-americanos divulgaram números impressionantes. Cerca de cinco milhões de pessoas perderam seus empregos nos EUA desde a assinatura do Nafta. Mais quatro milhões perderam seus empregos no México.
Folha - Isso pode ser evitado?
Jennings - Acreditamos que sim. Existem mecanismos que permitem a competição e integração, sem que isso acarrete em demissões. Nossa experiência na Europa mostra que quando se faz um acordo econômico você não resolve o problema do desemprego.
Os líderes europeus estão mais preocupados com isso atualmente. É preciso ter em mente que estamos vivendo um momento muito singular na história. Nós estamos vivendo um novo tipo de "revolução industrial", que inclui a globalização. As vantagens para a sociedade são evidentes e a democracia pode ser uma para todos.
Estamos vivendo a era da informação, com uma sociedade mais atualizada e presente do que nunca. Também há a revolução tecnológica, que afeta diretamente a integração. Essa evolução tem que ser utilizada em benefício da sociedade e para melhorar a qualidade de vida. Mas o que estamos observando nos últimos dez ou 15 anos é uma obscena distribuição dessas vantagens. Os ricos estão mais ricos e os pobres estão mais pobres.
Folha - O desemprego é um problema que persiste no Brasil, que não foi eliminado com a implantação do Plano Real. Os efeitos da globalização também seriam responsáveis por isso?
Jennings - Sim, isso também é facilmente notado aqui como em outros países da América Latina. Essa situação se agrava graças a corrupção e a falta de responsabilidade de alguns governos. Há também o problema grave da distribuição de renda. Hoje ainda existem cerca de três bilhões de pessoas no mundo vivendo com renda diária de até US$ 2.
Folha - Como o sr. vê a posição dos sindicalistas brasileiros com relação a esse processo?
Jennings - A impressão que tive é que os sindicatos brasileiros, assim como os de outros países, concordam com essa visão. Existe uma campanha grande em desenvolvimento. Os sindicatos brasileiros entendem que todo o processo não terá sucesso se não for incluída a discussão social.
Folha - O sr. acredita num acordo breve entre os países latino-americanos e os EUA em relação a Alca?
Jennings - Acredito que o acordo está próximo, mas será preciso ceder e discutir os direitos trabalhistas. Esse diálogo poderá gerar direitos trabalhistas mais justos, como remuneração e aposentadoria adequadas e recolocação de pessoas desempregadas.
Folha - O sr. esteve no Brasil em 1982. Qual a impressão que está tendo do país nesta sua segunda visita?
Jennings - Notei muitas mudanças nestes anos, tanto na situação econômica, política e social, como também na democrática. Eu quase não reconheci o país. Muitas mudanças podem ser vistas facilmente. Só no caminho do aeroporto para cá, por exemplo, é possível ver várias companhias internacionais. Isso demonstra que a economia brasileira está ficando cada vez mais internacionalizada.
As mudanças políticas também são visíveis. Quando estive na América Latina pela primeira vez, os governos do Chile, Argentina e do Brasil ainda eram militares. Agora, vocês têm mais liberdade, mais democracia e podem lutar por melhores direitos trabalhistas.

LEIA MAIS sobre a Alca na pág. 2-7

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