São Paulo, segunda-feira, 3 de março de 1997
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Não se fazem mais ovelhas como antigamente

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

Dolly, Dolly, a cara da mãe, primeira ovelha que contamos e nem por isso adormecemos. Pelo contrário, a insônia.
Fomos preparados para sua vida, com a mesma técnica com que se prepara a morte, aos poucos, suavemente.
Se levasse em conta a literatura, não suspeitaria das ovelhas. Dos rinocerontes, talvez. Depois de Ionesco, os rinocerontes estavam prontos para esse papel.
Ovelhas são tão obedientes que acabariam se prestando a este crime contra a diferença. De agora em diante, os rebanhos já não se limitam a seguir um só pastor. Do código genético, ninguém se desgarra e mesmo as ovelhas negras serão rigorosamente planejadas.
Daqui a pouco virão os clones humanos. Quem disputará, nesse reino, a primazia da ovelha: banqueiros, contorcionistas, ciganos, operadores de vídeo, biólogos marinhos?
Os poetas, desde já, estão fora. Seu código genético se escreve em verso, ganha novas formas quando lido. Sucedem-se as estações, amarela o papel, mas a poesia está sempre lá, igual e diferente.
Mas os poetas também criam, diriam os cientistas. Mas não clonam. Basta comparar Dolly com Jandira:
"O mundo começava nos seios de Jandira/
Depois surgiram outras peças da criação/
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo/
Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos"
O fato de o braço esquerdo às vezes desaparecer no caos é uma prova de que Jandira nasceu no coração de Murilo Mendes. Foi o seu útero materno.
"Certos namorados viviam e morriam/
Por causa de um detalhe de Jandira/
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira/
Outro por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira/
E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas"
Coração de poeta, útero de mãe, é preciso um ponto de partida. O que será dos recém-nascidos que não conheceram o berço líquido, não viveram os sobressaltos da mãe? De que vão lembrar quando derem seu primeiro mergulho com a garrafa de ar e sentirem o ritmo de sua respiração subaquática?
O fato de terem começado com as ovelhas é significativo. Bichos transgênicos já existem. Dolly foi clonada. É uma ovelha-boneca que, ao invés de mamãe, dirá mée, fará xixi, fechará os olhinhos e dará à luz novas ovelhas-bonecas que berrarão mée.
E nessa sinfonia de mãe, mée, ninguém mais saberá, certamente, de onde veio. A rigorosa ciência masculina triunfa sobre a mulher. Não podemos carregar filhos em nossos ventres, mas os levamos em nossos tubos de ensaio, gestaremos em nove meses, com desejos de comer melancia no fim da tarde, e lá está ele no dia marcado, cesariano.
Se vivesse ainda na década dos 60, diria apenas: não fique aí parado, você será clonado. As esperanças, hoje, são menores. Clinton quer um estudo ético sobre o assunto. Mas quem nos garante que Clinton não é um clone de um advogado republicano, e que futuro tem a ética quando investigada por ele?
Não é preciso muito poder de previsão para supor que um dia essa técnica chegará a Miami. Eles começarão se clonando, em busca da eternidade. Depois, clonarão os filhos, as empregadas, e a coluna de óbitos e nascimentos dará lugar aos eletrodomésticos e computadores, que terão, a partir daí, a exclusividade da mudança.
Um mundo de pessoas idênticas, com eletrodomésticos em permanente mutação, ovelhas pastando de uniforme, rinocerontes mergulhando na água turva de feno e fezes, passeios escuros para "trottoir" dos transgênicos, alimentos em cápsula, pena de réplica para os poetas, loucos e amantes.
A única maneira de resistir, aos que ainda não forem replicados, é a convencer de que, no seu caso, não vale a pena. Insistir nos próprios defeitos de fabricação, desesperadamente. Felizes os heróis de passado, aprisionados em estátuas bombardeadas pelo cocô de pombo. Contavam com a chuva, o vento, a ferrugem, a absoluta indiferença dos transeuntes.
Os americanos agora querem fazer réplicas de madre Teresa de Calcutá, bela maneira de congelar a realidade. Ninguém pensa em acabar com a miséria. No fim do século 20, impotentes para realizar a grande mudança, construímos a grande réplica. Mée.

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