São Paulo, terça-feira, 4 de março de 1997
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De lobos e cordeiros

LUÍS PAULO ROSENBERG

Para viabilizar um regime federativo, os Estados transferem ao governo federal alguns de seus direitos. O de declarar guerra, por exemplo, no plano político. Ou o de emitir moeda e endividar-se livremente, no lado econômico.
Mesmo a própria Constituição de 1988, notabilizada pelo seu desprezo pelo bom senso econômico, obstaculiza o endividamento de Estados e municípios. Mas deixou uma porta entreaberta, facilitando, transitoriamente, a emissão de dívida para pagar débitos que decorressem de decisões judiciais -os hoje famosos precatórios.
Onde podem surgir dúvidas sobre a lisura do processo de venda de títulos para pagamento de precatórios?
Em primeiro lugar, no pleito pelo lançamento, se este for indevido: o governador ou prefeito solicita autorização de emissão de um valor superior ao de precatórios a pagar, assim conseguindo fundos para outros usos não autorizados pelo seu orçamento, em nítida manifestação de abuso do poder.
Em segundo lugar, no Banco Central -a quem cabe analisar o pleito e orientar o Senado sobre sua correição-, se ele tiver sido omisso curvando-se a pressões políticas ao recomendar a aprovação de uma operação tecnicamente desaconselhável.
Em terceiro lugar, no próprio Senado, caso tenha votado a favor de um pleito julgado inconsistente pelo Banco Central.
Em quarto lugar, no lançamento dos papéis. Seja pela instituição financeira encarregada do lançamento, se o faz a taxas de juros mais altas que as de mercado, seja pelo administrador de um fundo, que compra o título com uma taxa de juros implícita abaixo das taxas de mercado. No primeiro caso, o setor público é lesado, a favor da gangue encarregada da venda; no segundo caso, os quotistas do fundo são os perdedores, pois tiveram parte do seu patrimônio desviado para os bolsos dos trampeiros.
De qualquer forma, não há porque procurar vício nas transações que se efetuarem posteriormente com estes títulos. Quem os adquiriu em primeira mão -em boa ou má-fé- encontrará posteriormente no mercado compradores que se interessarão pelos juros, prazos ou confiabilidade do papel e ele será transacionado normalmente. Vale dizer, a maracutaia original não impregna o título com uma espécie de Aids da corrupção, que contaminaria inexoravelmente todos os seus detentores futuros.
Em consequência, quando a CPI dos precatórios vai atrás de crimes cometidos nas quatro etapas aqui listadas presta um serviço não só ao Brasil em geral como ao sistema financeiro em particular. Ao extirpar os larápios que existem no mercado, a CPI elimina agentes cujas práticas ilegais garante-lhes uma vantagem competitiva insuperável, face às instituições éticas.
Entretanto, quando interfere nas negociações ocorridas posteriormente com estes títulos, a CPI cobre o mercado todo com um manto de desconfiança, prestando um desserviço ao país. Um comprador de um carro usado não pode estar envolvido numa eventual falcatrua cometida entre a montadora e a revendedora desse veículo, quando ele foi negociado pela primeira vez. Da mesma forma, um grande banco que comprou um título destes a preço de mercado não deve ser enredado neste mar de lama que as investigações fazem aflorar.
Seria tão injusto como foi a acusação do lobo de que o cordeiro que bebia rio abaixo estava sujando a água que a fera iria beber.

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