São Paulo, terça-feira, 4 de março de 1997
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'Evita' não é bom nem ruim; muito pelo contrário

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"Evita" é um abacaxi? É. Mas não parece. Tudo é tão vestido pelas aparências que o erro recobre com "o manto diáfano da qualidade". "Evita", como tantos outros produtos da indústria do pós-cinema, até que parece bom; mas não é. Tudo funciona: os efeitos especiais, a fotografia; mas o filme, não.
"Evita" é, digamos, uma "pós-porcaria". O que é isso? Seguinte: os velhos "abacaxis" tinha a cara óbvia do "abacaxi"; tudo mancava, os heróis não emocionavam, os vilões eram ridículos etc... O sujeito saía do cinema com a rútila certeza de que tinha visto um abacaxi. E tinha a suprema alegria de se vingar com os amigos: "Não vai, não vai!".
Já com "Evita", é diferente. Eu saio do cinema e encontro um amigo: "É um lixo!", digo. E ele: "Ah, é?... Então, não vou!" E eu: "Vai sim, tem de ver! É importante!"
Por que é importante ver "Evita"? Sei lá. Talvez porque temos de estar informados sobre nossa desinformação, temos de estar atualizados sobre o "nada" que nos oferecem.
Ou seja: o "fato-Evita", seu descaro de marketing, sua falsa "qualidade", merece ser visto. Precisamos afinal entender a marcha lenta da "dialética da burrice", esse "baixo-Hegel" que nos levará ao espírito-de-porco.
"Evita" é um pacotão de coisas desidratadas que não são nem odiáveis, nem amáveis. O filme é a cara de hoje.
O pós-musical
O filme é uma adaptação óbvia do aguado musical dos anêmicos e bilionários Tim Rice e Andrew L. Weber, herdeiros bastardos de Gershwin, de Cole Porter, de Bernstein, de Stephen Sondheim, de tantos.
Em "Evita", suas canções são apenas uma grande pasta sonora servindo de prólogo para o infalível orgasmo populista do "Dont Cry for Me Argentina". Ouvi-las provoca uma intensa saudade funérea dos musicais antigos. Nos grandes "film-musicals" de 35 a 55, havia a esperança de uma vitória da vida.
A alegria dos musicais democráticos do pós-guerra talvez tenha sido o maior feito do cinema americano. Busby Berkeley (o grande precursor) foi tão importante para a imagem livre quanto um Marcel Duchamp. Fred Astaire era um Picasso. Minelli, Gene Kelly, Stanley Donen, Hermes Pan, Jerome Robbins, Michael Kidd e tantos outros foram gênios da "poética da felicidade".
Já o "pós-musical" (tirando o delírio "camp" que foi "All That Jazz", do grande cafajeste Fosse) é uma pasta sem heróis nem esperança. Como no mundo de hoje. Como em "Evita", que parece um "mau Fellini filmado pelos fotógrafos do 'National Geographic'", como disse Marcelo Filgueiras no "Clarin".
Sem esperança, "Evita" finge ser um "naturalismo cantado", um "documental-musical" (um novo gênero ou um esparadrapo?).
Só que os "documentais" hoje estão sendo "recriados", como aquele incrível "Na Cama com Madonna", onde se planejava o acidental, onde o "espontâneo" era encenado, onde a "verdade" era fingida para parecer verdade mesmo.
Madonna inventou o cinema histérico. "Evita" não é bem ficção, nem documental, nem tragédia, nem comédia. Fica numa espécie de ante-sala da opinião política, no vestíbulo de qualquer engajamento, já que, no fim do século, ninguém mais sabe onde está o famoso "Bem". Nem o Bem liberal-americano, nem o Bem socialista.
Abacaxi ou cebola?
"Evita" não é bem um abacaxi; está mais para "cebola".
O filme é fabricado com o que está "fora" dele. Será o filme a história de Evita ou de Madonna querendo fazer Evita? Antonio Banderas está no filme porque a Madonna quis comê-lo ou ela quis comê-lo porque ele é o Antonio Banderas, como vimos no supra-aludido documentário "Na Cama"? Ou teria sido tudo mentira, chegando Madonna a fingir que era tesão, o tesão que ela "deveras (não) sentia" por ele?
Uma coisa é certa: Evita e Madonna queriam o poder.
Talvez "Evita" seja a história de Madonna querendo o poder de ser uma grande atriz sem ser, fazendo o papel de Evita que queria o poder de ser uma grande mulher sem ser, mas sendo a grande atriz que Madonna não é.
O drama de Madonna se estrepando como atriz é o mesmo de Evita se estrepando em sua breve vida ambiciosa. Claro que tudo isso poderia ter o supremo "chic" rococó de ser um jogo de espelhos sofisticados, poderia ser uma "divina metalinguagem decadente". Mas não é.
Esse barroco decadente não nos ilumina. Não tem nem mesmo a perversão dos grandes "fins-de-siècles". Nosso "fim-de-época" é desidratado e fosco. Ao fim, tudo se guarda nas prateleiras do óbvio dos estúdios.
Em "Evita" tudo se encaixa como os jogos de armar de colégios para mongolóides: o filme fala do populismo de Perón por meio de uma narrativa tão populista como o populismo de Perón. A música aguada de Weber é morna como o aguado morno do enredo, onde mocinhos e bandidos se anulam, mornamente.
O próprio "Che", que no original era o Guevara, futuro guerrilheiro observando tudo do ponto de vista de Marx, vira o "Che Banderas", um "Zé Povinho" que olha tudo do ponto de vista dos excluídos cultos, como nós, os latinos impotentes com o "neoliberalismo".
Para onde vai o Che, no final? Na peça, ia fazer a revolução cubana. No filme, talvez vá trabalhar em Hollywood, fazendo o papel de Antonio Banderas, que o falso-verdadeiro tesão de Madonna revelou.
Nos filmes como "Evita" tudo é "predictable" (previsível), como dizem os roteiristas americanos. Só que a "previsibilidade" hoje, em vez de ser um erro, virou virtude: os idiotas descobrem o óbvio e com isso se contentam. É uma nova catarse, a "pós-cartasis": o óbvio reassegurador da falta de imaginação.
Por fim, "Evita" é competente, ou, talvez, "neocompetente". É uma produção impecável, marketing genial. Para quê? Para nada. Aliás, tudo é assim no cinema de LA que nos domina, do qual o ícone atual é o falso bom cineasta Oliver Stone (não por acaso, roteirista de "Evita").
Em suma, "Evita" é um filme "que não é". Parece sério, mas não é. Parece político, mas não é. Parece musical, mas não é. É o quê? Sei lá!... É um abacaxi, mas tem de ser visto.

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