São Paulo, terça-feira, 4 de março de 1997
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Um mundo sem armas nucleares

JOSÉ MONSERRAT FILHO

O fim da Guerra Fria não nos trouxe o fim dos arsenais nucleares nem sua redução tranquilizadora. O assunto sumiu desde a dissolução da URSS, que levou para o ralo as propostas de desarmamento nuclear efetivo.
Hoje, só a Assembléia Geral da ONU, o fórum mundial mais democrático de todos os tempos, vem nos renovando as esperanças de genuína segurança internacional.
Em 1994, ela consultou a Corte Internacional de Justiça, principal instância jurídica da ONU, sobre a legalidade ou não do uso ou ameaça de uso das armas nucleares à luz do direito internacional.
Em 1996, a Corte concluiu, com responsabilidade e realismo, que ainda não há norma internacional proibindo o uso de armas nucleares em legítima defesa. Frisou, porém, que os países têm a obrigação internacional de negociar de boa-fé o desarmamento nuclear, sob rigoroso controle da comunidade mundial.
A obrigação é legal e não só moral. Está calcada no Tratado de Não-Proliferação das Armas Nucleares (TNP), de 1968, assinado e ratificado pela maioria absoluta dos países, inclusive pelas principais potências nucleares. Seu artigo 6º é claro: "Cada um dos participantes compromete-se a realizar, de boa-fé, negociações sobre medidas efetivas para a cessação, em data próxima, da corrida às armas nucleares e para o desarmamento nuclear, e sobre um tratado de desarmamento nuclear geral e completo, sob estrito e efetivo controle internacional".
O compromisso foi reiterado na conferência de revisão do TNP, em 1995. As potências nucleares assumiram, ali, o dever de envidar "esforços sistemáticos e progressivos para reduzir as armas nucleares em escala global, tendo em vista o objetivo último de eliminar estas armas".
Clarificado o quadro jurídico, a Assembléia Geral da ONU aprovou resolução, agora em dezembro, rogando a todos os países que cumpram de imediato essa obrigação internacional, iniciando negociações multilaterais, já em 1997, tendo em vista a rápida conclusão de um tratado que proíba desenvolvimento, produção, testes, instalação, estocagem, transferência, uso e ameaça de uso das armas nucleares, e providencie sua eliminação.
A resolução foi aprovada por 115 votos a favor, 22 contra e 32 abstenções. Votaram contra as potências nucleares signatárias do TNP, que reafirmaram, na conferência de revisão, o compromisso de reduzir e liquidar as armas nucleares. Mas essas mesmas potências apoiaram fortemente o Tratado de Proibição Total dos Testes Nucleares (TPTT), redigido em 1996, que nada dispõe sobre a eliminação dos arsenais. Por estas e outras, a Índia não quis assiná-lo.
Foi um avanço e tanto chegar ao TPTT, após décadas de conversações na ONU. A recusa da Índia, porém, também é positiva. Indica a incongruência dos que rejeitam os testes e, ao mesmo tempo, defendem a permanência dos arsenais nucleares, inclusive com a conhecida possibilidade de aperfeiçoá-los via simulações eletrônicas. Alguém precisava dizer que o fim dos testes já não basta, e que o essencial, hoje, é fixar um cronograma sério para libertar o mundo das armas nucleares. A Índia cumpriu esse papel necessário.
A resolução da Assembléia Geral respaldou a posição da Índia em, pelo menos, dois momentos: 1) ao pressionar as potências nucleares a cumprirem a obrigação assumida de trabalhar de forma honesta e concreta, com prazos definidos, pelo desarmamento nuclear; e 2) ao reconhecer que "a única defesa contra a catástrofe nuclear é a eliminação total das armas nucleares e a certeza de que elas nunca mais voltarão a ser produzidas".
A assembléia aprovou também a resolução, proposta pelo Brasil, que declara o hemisfério sul e áreas adjacentes livres de armas nucleares. Ali se louva o fato exemplar de que mais da metade do planeta já optou por vetar tais armas, por quatro tratados: Tlatelolco, para a América Latina; Rarotonga, para o Pacífico Sul; Pelindaba, para a África; e Bancoc, para o Sudeste Asiático.
Só votaram contra EUA, Reino Unido e França, donos de armas nucleares, que não aceitam negociar sem mais delongas a extinção de seus estoques letais. Até quando o mundo vai suportar essa irracionalidade?

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