São Paulo, terça-feira, 4 de março de 1997
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As duas reformas da Previdência

PAUL SINGER

A Previdência Social brasileira, infelizmente, está longe de cumprir sua missão básica de proporcionar aos aposentados um rendimento capaz de lhes assegurar um padrão de vida na velhice compatível com o usufruído quando em atividade. A grande maioria recebe apenas uma fração do rendimento necessário, e mesmo assim o sistema previdenciário está em déficit.
Há, portanto, dois déficits na Previdência: um constituído pela insuficiência dos benefícios em relação às necessidades; o outro, pela insuficiência das contribuições em relação aos gastos.
No debate atual a respeito da reforma da Previdência, toda a ênfase é posta sobre o segundo dos déficits, enquanto o primeiro é ignorado. Esse viés resulta da proposta de reforma do governo, que se centra na supressão de benefícios e na redução da previdência pública e universal para abrir espaço à previdência privada e seletiva.
Para recolocar o debate sobre o que fazer com o sistema previdenciário brasileiro em seus termos devidos, é preciso começar por reconhecer que há duas concepções de previdência em confronto: uma de previdência social redistributiva e outra de previdência individual financeira.
A previdência redistributiva propõe reduzir as desigualdades produzidas pela economia de mercado, tendo em vista eliminar, no final da vida, as carências que a pobreza impõe a uma parcela da população. Isso implica, naturalmente, eliminar, para os trabalhadores mais destituídos, a proporcionalidade entre contribuição e benefício.
Para os demais, os benefícios devem ser proporcionais às contribuições durante a vida ativa. Mas, para os que foram incapazes de contribuir, um benefício mínimo capaz de satisfazer necessidades básicas deve ser assegurado.
A previdência individualista nega-se a qualquer redistribuição. O sistema de previdência deve assemelhar-se ao de seguro: cada um deve ser livre para escolher o quanto quer recolher e em que seguradora, e o resultado financeiro de sua poupança deve lhe ser restituído nas condições contratuais. E o sistema previdenciário deve ser inteiramente autofinanciado.
No Chile, que hoje serve de paradigma para as propostas individualistas, até mesmo a contribuição patronal à Previdência foi eliminada. Manteve-se apenas a obrigatoriedade do seguro previdenciário, com uma contribuição de 10% sobre o salário.
No Brasil, assim como na grande maioria dos países, a tradição é que a previdência seja redistributiva. A Constituição de 1988 consagra essa tradição ao incluir a previdência na seguridade social, definida como "um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social" (artigo 94).
Diz o parágrafo único do mesmo artigo que o primeiro objetivo da seguridade social é a "universalidade da cobertura e do atendimento". A Constituição prescreve que nenhum brasileiro deve ser excluído da previdência, da assistência à saúde e social.
E, mais adiante, ela determina: "A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados e dos municípios, e das seguintes contribuições sociais (...)" (artigo 195).
De acordo com nossa Lei Magna, a seguridade não deve ser financiada exclusivamente por contribuições, mas também por recursos orçamentários.
Esse ponto é fundamental. Se a seguridade -e, dentro dela, a previdência- deve atender a todos, sendo evidente que a massa de marginalizados não contribui nem pode ser obrigada a fazê-lo, então a diferença deve ser coberta com recursos de outra proveniência, e a Constituição determina que esta seja a receita orçamentária federal, estadual e municipal.
Então, a rigor, não existe déficit previdenciário, que, no entanto, é a causa principal da reforma da Constituição e do corte de benefícios propostos pelo governo federal.
A proposta de reforma do governo pretende substituir a previdência redistributiva, consagrada pela Constituição, mas não implantada na realidade, por um sistema misto em que predomina a previdência individualista. Mas isso não é dito claramente.
O que se alega é que benefícios gerais, como a aposentadoria por tempo de serviço, são um "privilégio", colocando-a no mesmo saco das aposentadorias especiais de professores, trabalhadores em condições insalubres e parlamentares. E que o pretenso déficit previdenciário vai inviabilizar o sistema no futuro, como se a arrecadação tributária tivesse alcançado o seu limite máximo, e não houvesse no país rendimentos elevados que poderiam ser tributados em grau maior.
Na realidade, a Previdência Social deve ser reformada mesmo, mas no sentido de sanar o primeiro déficit, o dos benefícios em relação às necessidades da grande massa de trabalhadores. O que vai exigir mudanças fiscais, no sentido de que as receitas públicas sejam reforçadas para poderem cobrir o gasto previdenciário suplementar. Ou elevar o teto das contribuições, que hoje são regressivas -contribui proporcionalmente menos quem ganha mais-, sem elevar os benefícios desses contribuintes na mesma medida. Redistribuição previdenciária é isso.

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