São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
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O SANTO CAOS

CARLOS GUILHERME MOTA

com esta advertência, datada de agosto de 1931, Manoel Bomfim concluía "O Brasil Nação": "Do presente, há qualquer coisa muito grave, lúgubre arcaísmo a pesar duramente sobre a nação, e do qual é mister aliviá-la". Bomfim detectava o nascente processo de montagem do modelo político-social que duraria várias décadas, polarizado pelos militares responsáveis por intervenção ostensiva na organização da República. Notava a força do que denominava "mentalidade fardada", conjunto de valores que iria marcar o "espírito público" em nossa ambígua contemporaneidade, com a pretensão de assegurar nossa vida republicana dentro de uma "segurança absoluta". Bomfim denunciava, nesse livro revelador e radical, a consolidação de um círculo de ferro de poder, para "gozo de uma classe que já vai se convertendo em casta".
Esta obra pujante, denunciadora, contrasta fortemente com interpretações de outros escritores dos anos 20 e 30, vanguardistas como as de Freyre e Sérgio Buarque. E representa um avanço em relação aos seus livros anteriores, "A América Latina" (1905), "O Brasil na América" (1929) e "O Brasil na História" (1931). ("O Brasil Nação", também publicado em 1931, completa a trilogia brasileira.)
Este livro é revolucionário. Revolucionário no sentido preciso do termo: segundo Bomfim, para a resolução de "problemas nacionais", que derivam de sua formação histórica, somente uma transformação deveras revolucionária, uma ruptura verdadeira. Neste seu livro derradeiro, tem-se o desdobramento das idéias e de teses contidas nos livros anteriores. Já agora, para além (e contra) a chamada Revolução de 1930.
Bomfim produz páginas notáveis de história radical. Rastreando com erudição fontes conhecidas, dá nova feição a informações que passariam despercebidas a um leitor menos atento (o papel de Pedro 1º, em 1824, na morte dos revolucionários João Guilherme Ratcliff, Loureiro e Metrovich), descobre nossa permanente história de lutas, como, por exemplo, a da oposição ativa de "grandes brasileiros" no Primeiro Reinado, contra os embustes, o bragantismo, o mandonismo e a corrupção, alcançando o século 20. O agente dessa história é vago, "o brasileiro", a "alma brasileira", que teria por base sobretudo o trabalhador. Sua teoria, contudo, passava muito além da conciliação liberal: para ele, colaboração de classes era engodo.
O que o Brasil necessitava no alvorecer dos anos 30 era algo "para o qual não se pronuncia o atual revolucionarismo em ação". Daí o impasse, o caráter agônico de seu livro-documento. Não havia força suficiente para ações no sentido de elevar "a massa do povo brasileiro, trazer para o nível cultural do momento os milhões de descendentes e representantes de raças a quem, até agora, só foi dado trabalhar e sofrer. Dele, povo, à medida que a organização se desenvolve, emergirá a trama social própria -uma nação a guardar seu lugar no mundo, e que, por sua conta, delineará o destino que lhe cabe".
Numa mistura de teorias em que combina o sabor bergsoniano da "trama de energias", da "força", com os "germes" de novas formas dotadas de "fermentação revolucionária", e ainda com a "extrema situação de dependência", Bomfim prescreve o caminho a ser percorrido, a partir de nossa formação histórica específica, com nossa economia "dependente" de centros mais avançados. Não por acaso, dois agudos críticos contemporâneos intitularam uma coletânea de textos de Bomfim sob o rótulo "História e Dependência", sugerindo que a famosa teoria, hoje enjeitada, teria nele suas origens. (Nos EUA, Albert Hirschman descarta -com fundamento e graça- tal paternidade, mencionando seus "seguidores" Fernando Henrique, Sunkel e Gunder Frank... Cf. "Auto-Subversão", Companhia das Letras)
Num passo além, o crítico sergipano notava que certas lideranças ostentavam revolucionarismo como jogo de cena, tentando substituir "'a intervenção do operariado por atitudes de convencional revolucionarismo".
E a revolução, onde começaria? Surgiria do "santo caos", de onde, por uma espécie de saturação, se processaria a organização da tal energia, fazendo surgir , "o que na sua hora, definirá a alma brasileira", sempre por meio "de salutar e indispensável renovação revolucionária".
A formulação de Bomfim é, neste como em muitos outros passos, generosa. A trama de energias que darão corpo à nação afirmar-se-ia na "carência das formas preventivas" (formulação pouco clara, o que aliás ocorre muitas vezes, talvez devido à sua situação física). Mas, em seu ideário na forma derradeira, é nítido o objetivo pelo qual se fará a revolução: para conceber e formular o necessário plano de educação e preparo da massa popular.
Surge então o problema do financiamento, das somas formidáveis para essa obra educativa. Para Bomfim, reside aí o limite do "atual revolucionarismo em ação". Daí a necessidade de "um jato verdadeiramente revolucionário que dispensaria todo esse aparelho obsoleto, com economia das dezenas de milhares de contos que custam quartéis, etapas (na carreira), marechais e canhões inúteis". Daí sairiam os recursos para o preparo das novas gerações de brasileiros...
Estará enganado quem situar as reflexões do médico sergipano num subcapítulo menor na "História das Ideologias Culturais no Brasil". Bomfim se utilizava de sua formação científico-médica para mostrar o progresso que já se notava aqui no campo da higiene e do sanitarismo. Ia além, ao vincular essa problemática ao sistema de inquilinato, aos cortiços, ao regime de propriedade, vinculando -e aqui está sua radicalidade- as moléstias físicas às moléstias sociais. Combate os cortiços, mas também a "ganância argentária", a "usura". E, abandonando o lado sombrio de nossa história, demonstra como havia males que poderiam ser evitados, se o Brasil se alinhasse com certas vanguardas "nesta hora do mundo moderno".
Certa historiografia já tem apontado a importância de Bomfim. Desde Dante Moreira Leite, em seu "O Caráter Nacional Brasileiro" (de 1954, e reescrito em 1965, num contexto de revisões radicais no Brasil), e de Aluísio Alves Filho (1974) até Roberto Ventura e Flora Sussekind, Darcy Ribeiro, Wilson Martins e Antonio Candido, existe uma tomada de posição a respeito do escritor e cientista que se preocupou com "a grande nação que poderíamos ser". Escritor que colocava em primeiro lugar a educação, para criar "indivíduos inteligentemente produtores e moralmente disciplinados para uma vida livre". Ou, como se nota num dos prefácios assinado por Ronaldo Conde de Aguiar -que está escrevendo uma biografia sociológica de Bomfim sob o título "Um Rebelde Esquecido"-, seu pensamento não perde atualidade porque aponta o persistente traço definidor de nossa história, "a triste sina do Brasil, e do seu povo, que é lidar permanentemente com os mesmos e irresolvidos problemas da sua formação histórica".
Como não ver em toda a produção de Bomfim um traço jacobino, "disciplinador", reverberação da Convenção francesa e das lutas pela escola pública na França por mais de um século? (Note-se que "A América Latina" foi escrito em 1903 e apareceu em 1905 em Paris, e que menciona Sampaio Bruno, o jacobino português autor de "Brazil Mental".) Constate-se que, de sua demolidora crítica às visões bragantinas, oficiais, oligárquicas ou palacianas de nossa história, tipo Varnhagen ou Pereira da Silva, escapam apenas poucos personagens, como Vergueiro, Feijó e Floriano Peixoto. A Nação que preconiza requer a criação de cidadãos "moralmente disciplinados" para a convivência democrática.
Em sua obra, o ranço aristocratizante desaparece, o que é visível nas interpretações que faz de nossa história nacional -grife-se o nacional- assim como da história da América Latina. Diga-se, ainda neste passo, que Bomfim foi dos primeiros -de qualquer modo, o mais importante até então- a utilizar-se da expressão "América Latina", até porque era um admirador profundo da Revolução Mexicana (1917) que, segundo pregava, deveríamos adotar por modelo. Uma revolução nacionalista popular, como primeiro passo.
Ao lermos quase 70 anos depois essas páginas, vêm-nos à mente o contexto em que foram escritas, de profundas transformações no mundo. Em verdade, inaugurava-se a história contemporânea. Se o grande livro de Bomfim, por ser mais bem escrito e articulado, é "América Latina", o mais combativo é este "Brasil Nação", quando o autor está com a mente incendiada por fenômenos impactantes como os desdobramentos da Revolução Russa, a crise de 1929 e a escalada do fascismo. Pensava na América Latina, e no Brasil dentro de um sistema latino-americano, mas fazia advertência severa aos perigos do panamericanismo então cultivado, sobretudo pelos EUA.
Havia porém uma segunda razão para sua pressa em explicar o Brasil, dar soluções para seus males. O neto e herdeiro Luiz Paulino deixa-nos imagem pungente do período que vai de 1926 -quando o avô descobriu que estava com câncer- até abril de 1932, quando morreu, após submeter-se a 14 cirurgias (sem morfina, recurso da época, para não perturbar seu raciocínio). Um escritor devastado pela doença e pelas operações. Isso talvez nos permita entender as repetições e certa falta de andamento lógico de seus livros dessa época, em parte ditados ao jovem.
Bomfim traz para primeira plano o povo brasileiro. É preocupado com a "alma brasileira", com o povo "facilmente adaptável", plástico, móvel. Mas, e aqui reside a diferença, não tem uma visão harmonizadora e conciliatória do papel da população marginalizada ao longo da história do Brasil. Inspira-se antes no francês Blanqui, quando discute a relação entre a minoria e a massa. "Os desclassificados, exércitos invencíveis do progresso, são o fermento que intumesce surdamente. Amanhã serão a reserva da revolução." De Blanqui salta para a conclusão: "Há, nas reparações sociais e nas soluções esperadas pelo trabalhador, muita coisa que deve ser indicada e instituída sob a sua orientação direta e imediata. Não há que ostentar revolucionarismo, nem substituir a intervenção do operariado por atitudes de convencional revolucionarismo".
Note-se, finalmente, que em suas preocupações, arrolavam-se ainda a previdência, a higienização urbana e rural, o direito à habitação e à assistência social, à maternidade, ao direito sindical e de greve.
Resta a questão da pouca receptividade à sua obra. Talvez a explicação resida no fato de não ter logrado colocar-se ao lado de nenhuma força expressiva, tanto do lado dos tenentes e dos revolucionários de 30, como dos liberais progressistas, ou dos comunistas ou de outros segmentos que pudessem dar publicidade e continuidade a suas teses e reflexões, aprofundando-as e dando-lhes roupagem teórica e linguagem modernas. Não pertencia a nenhuma constelação, escola, academia, grupo de referência ou grupo-geração, como Euclides, Freyre, Drummond, Arinos, Milliet, Buarque, Rodrigo ou mesmo Caio Prado. Sua radicalidade, sobretudo contra as oligarquias e na interpretação de nossas lutas desde a Independência, custará a ser ultrapassada. Mas sempre voltará ao debate, pois sua obra centra-se nos impasses da soberania brasileira, tema permanente, com ou sem "globalização".

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