São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
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A língua de Freud

PAULO CÉSAR DE SOUZA

o primeiro vocabulário psicanalítico, publicado em 1924 como suplemento ao "International Journal of Psycho-Analysis", era apenas um glossário de 15 páginas, destinado ao uso dos tradutores ingleses de Freud. Duas décadas depois, Alix Strachey compilou o "New German-English Psycho-Analytical Vocabulary", que constituía uma ampliação do anterior e estabelecia os termos que seriam adotados na edição standard dirigida por James Strachey.
Em 1968, veio à luz o "Dicionário Crítico de Psicanálise", de C. Rycroft. Mas o adjetivo ostentado no título assentava melhor em outro livro, publicado na mesma época: o "Vocabulário da Psicanálise", de J. Laplanche e J.B. Pontalis. Calçado no modelo do dicionário filosófico de A. Lalande, o "Vocabulário" firmou-se como a mais competente obra do gênero, como "referência obrigatória"-tão obrigatória que, num país onde não existe uma tradução confiável dos textos de Freud, tornou-se quase um "missal" para os estudantes.
Considerando que Laplanche e Pontalis nos apresentam um Freud mais ordenado e coerente que o original vienense, pode-se questionar o valor de sua influência. Não é difícil dar exemplos de parcialidade na argumentação de alguns verbetes do seu "Vocabulário", mas também não é este o lugar de fazê-lo. Para nossos propósitos, basta lembrar uma outra deficiência: eles tendem a ignorar a semântica dos termos originais, o modo como a terminologia freudiana se liga aos usos tradicionais e comuns dos vocábulos.
É justamente dessa omissão que cuida o "Dicionário Comentado do Alemão de Freud". Na bibliografia brasileira, esta é a primeira obra a adotar esse enfoque linguístico. Ela se compõe de 40 verbetes, escolhidos pelo autor segundo critérios de relevância teórica e dificuldade para a tradução. Cada verbete é constituído de cinco "módulos", dedicados à composição e sentidos do termo, à sua etimologia e derivados, à comparação com o termo geralmente empregado em português, a exemplos do seu uso por Freud e, por último, a comentários.
Os três primeiros módulos representam uma compilação de verbetes dos principais dicionários da língua alemã: Brockhaus, Duden, Grimm e Wahrig. No caso do terceiro, central em todo aspecto, já que nele são confrontados o alemão e o português, surge uma complicação: na tabela que resume as diferenças de significados e conotações, o autor vê como conotação o que não é explicitado nos dicionários e o que lhe parecem "decorrências lógicas de aspectos conotativos". Ora, denotação é o significado básico de um termo; conotação é o significado secundário, mais dependente do contexto. Ao ampliar esta última, a ponto de nela incluir "ilações e deduções", L.A. Hanns talvez esteja abrindo a porta para as associações.
O quarto módulo traz amostras do uso do termo em Freud, com frases e parágrafos extraídos de um bom número de textos. Todos os exemplos são citados conforme a edição standard brasileira. Sendo esta notoriamente ruim, quase cada trecho vem acompanhado de notas em que o autor corrige os erros ou imprecisões; ocasionalmente, toda a passagem é retraduzida. Cabe perguntar por que o autor não dispensou as citações da standard, traduzindo ele mesmo diretamente os exemplos, e por que em nenhum momento utilizou um adjetivo para qualificá-la.
Os comentários reunidos na quinta parte de cada verbete são feitos com base nos exemplos do módulo anterior. É possível, aqui e ali, discordar de certas afirmações: a de que "há termos bem mais próximos de angústia do que 'Angst'±", ou de que o substantivo "Nachtraeglichkeit" é frequente em Freud, por exemplo. Mas, no conjunto, é impossível não admirar o grau de conhecimento da teoria freudiana exibido por Hanns.
É igualmente difícil não estranhar sua afirmação de que não pretende se imiscuir nos "debates entre tradutores". Afinal, este dicionário é essencialmente uma obra de tradução. Ao se colocar olimpicamente acima das "querelas", ele parece imaginar-se além das questões de tradução. Na realidade, está aquém delas, por não perceber o maior problema com que se debate.
Algumas considerações de E. Coseriu podem ajudar a explicitar esta crítica. Num ensaio sobre teoria da tradução, ele adverte que muitos conteúdos de duas línguas são "incomensuráveis". Em geral, e equivocadamente, isto é considerado o grande obstáculo à tradução. Diz-se que palavras como "saudade", em português, ou "esprit", em francês, são intraduzíveis. Na verdade, diz o linguista, a maioria das palavras do vocabulário fundamental de duas línguas que não sejam histórica e culturalmente próximas -e às vezes até mesmo dessas- é "intraduzível". Um mero "Bom-dia!", por exemplo, não tem equivalente em inglês: os que falam esta língua dizem "Boa-manhã!" ou "Boa-tarde!".
Os significados são diferentes, são específicos de cada língua. Segundo Coseriu, pode-se transpor para outra língua a "designação". Ela se dá mediante os significados, mas não coincide com eles. A pergunta a fazer não é: "Como se traduz este ou aquele significado?", mas sim: "Como se denomina o mesmo fato em outra língua, na mesma situação?". O tradutor procede, primeiro, como um falante da língua de partida, ao entender ou "decodificar" um texto; depois, como um falante da língua de chegada, ao produzir ou "codificar" um texto -com a diferença de que o conteúdo a ser expresso já lhe é dado de antemão, em todos os detalhes.
Ao longo de todo o "Dicionário", Hanns se empenha em analisar os significados (intralinguísticos) dos vocábulos freudianos que escolheu -um trabalho de mérito, que torna o seu livro mais útil, para estudantes e profissionais, do que o "Vocabulário" de Laplanche e Pontalis. Ao mesmo tempo, ao contrastar as palavras portuguesas e alemãs, medindo âmbitos de sentido, não se dá conta de estar sempre às voltas com a incomensurabilidade básica de que fala Coseriu.
A indiferença para com os debates entre tradutores se manifesta no uso indiferenciado de "pulsão" e "instinto" para "Trieb", de "catexia" e "investimento" para "Besetzung" etc. É algo que tem um aspecto positivo, ao ilustrar como pode ser secundária a escolha terminológica, desde que os envolvidos estejam de acordo quanto ao que entendem por isso e aquilo. Ao mesmo tempo, é indício, na constituição intelectual do autor, de algo que Freud censurava reservadamente em Goethe: a dificuldade em emitir juízos, em "trancher", como dizem os franceses.
Por fim, há uma contradição essencial em redigir uma obra desse tipo. Isoladamente, as palavras são plenas de lacunas. São as relações trazidas pelo texto que preenchem tais lacunas. Uma palavra isolada é burra como uma porta sozinha num ermo: é preciso uma casa para lhe dar sentido. Enquanto não houver um texto confiável de Freud em português, o dicionário de L.A. Hanns será útil. Tomara que ele também deseje que o seu livro venha a se tornar supérfluo.

Paulo César Lima de Souza é autor de "Freud, Nietzsche e Outros Alemães" (Imago) e tradutor de Nietzsche e Brecht.

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