São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
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Inquietações de Nietzsche

SCARLETT MARTON

nos primeiros dias de janeiro de 1873, chega às mãos de Cosima Wagner um manuscrito encadernado com esta dedicatória: "Em homenagem cordial e como resposta a perguntas feitas em conversas e cartas, estas linhas escritas com prazer nas festas de natal de 1872". O remetente, um jovem professor da Universidade da Basiléia, chama-se Friedrich Nietzsche. O presente, um conjunto de pequenos textos, intitula-se "Cinco Prefácios para Cinco Livros Não Escritos".
Um ano antes, Nietzsche presenteara o casal Wagner com "O Nascimento da Tragédia", seu primeiro livro. Agora, enviava apenas anotações que acabara de recopiar e organizar. Ao contrário do que a dedicatória pretendia, o manuscrito não consistia numa resposta a questões previamente formuladas e nem num depoimento pessoal. Também não se tratava de um plano de trabalho e menos ainda de uma obra acabada. Mas, se não resultam de uma dedicação longa e minuciosa, os textos tampouco constituem projetos abortados. Testemunham, antes de mais nada, as inquietações teóricas de seu autor.
No terceiro prefácio, "O Estado Grego", Nietzsche entende que o Estado só nasce e cresce na Grécia Antiga a partir da guerra; constitui, em contrapartida, a condição mesma do aparecimento do gênio, como sentido e coroamento do homem enquanto tal. E, no quinto, "A Disputa de Homero", considera o "agon" homérico o motor de toda a vida política e social dos gregos, assim como de suas realizações intelectuais. Com os atletas nos estádios, os artistas nos anfiteatros, os partidos políticos na ágora e as cidades-Estado na Hélade, a noção de competição atinge a máxima universalidade.
O segundo prefácio, "Pensamentos Sobre o Futuro de Nossos Institutos de Formação", não faz jus ao título. O filósofo não tece aqui considerações gerais acerca da educação e do ensino, como nas cinco conferências "Sobre o Futuro de Nossos Estabelecimentos de Ensino", que proferiu no início desse ano de 1872. Limita-se a explorar uma questão específica nelas já presente; busca traçar o perfil do leitor ideal.
"A Relação da Filosofia de Schopenhauer com uma Cultura Alemã", o quarto prefácio, levanta questões que ressurgem logo depois na "Segunda" e na "Terceira Consideração Extemporânea". É um filósofo contemporâneo seu que o autor toma como ponto de partida para questionar a cultura alemã de sua época; é Schopenhauer que ele adota como critério para avaliá-la. E, com isso, reivindica a supremacia da filosofia.
De todos os prefácios, o mais significativo é o primeiro, "Sobre o 'Páthos' da Verdade". Aqui, Nietzsche alinhava idéias que reaparecem no ensaio inacabado de 1873, "Introdução Teorética sobre Verdade e Mentira no Sentido Extramoral". Investigando as relações entre a reflexão filosófica e o fazer artístico, lança as bases de sua crítica à concepção de verdade enquanto correspondência ou adequação. Sem saber, o homem se ilude ao pretender conhecer o mundo tal como ele é. Por isso mesmo, a arte, que se reconhece como ilusória, tem lugar privilegiado; é ela que deve prevalecer sobre o conhecimento.
Nesse momento, as inquietações do filósofo parecem apontar para direções diversas; mas as questões que elas suscitam acham-se todas interligadas. É na crítica da cultura alemã da segunda metade do século 19 que encontram seu ponto de convergência.
Nietzsche vive numa época de profundas transformações. No século passado, ocorrem na Alemanha importantes mudanças econômicas e sociopolíticas: a implantação da indústria, o aparecimento de novas camadas sociais, a unificação dos Estados alemães em torno da Prússia. E mudanças de igual importância ocorrem, também, na esfera da cultura e da educação.
Concluído o processo de unificação, a Prússia vê-se obrigada a criar novos laços para manter unidos em torno dela todos os Estados alemães. Uniformizando a cultura e o ensino, logra suprimir as diferenças e as especificidades regionais. Por outro lado, com a industrialização, surge a necessidade de ampliar o mercado interno e formar mão-de-obra especializada.
No final do século 18, a cultura tinha de ser criação desinteressada, desligada de intenções utilitárias. Agora, ela está atrelada às exigências do momento, aos caprichos da moda, aos ditames da opinião pública. Antes, o ensino devia ser puro, desvinculado de objetivos práticos. Agora, com a proliferação dos institutos profissionais e escolas técnicas, com o esfacelamento das universidades em cursos especializados, ele se converte em ensino de classe.
Adquirir cultura passa a significar capacitar-se para ganhar dinheiro ou ingressar nos quadros de funcionários do Estado. A formação cultural tem de ser rápida, para que o indivíduo possa ganhar logo dinheiro ou servir logo ao Estado; tem de ser aprofundada apenas o bastante, para que ele possa ganhar o suficiente ou servir de modo eficiente. Na Alemanha, a partir de 1870, desaparecem as inquietações com o cultivo do espírito e o desenvolvimento integral e autônomo do indivíduo.
É à Grécia Antiga que Nietzsche então recorre para opor-se a essas transformações; é a partir do que entende ser o espírito grego que combate a cultura alemã de seu tempo. E sua crítica é, sem dúvida, implacável.
Em tradução cuidadosa, vem a público a primeira edição brasileira de "Cinco Prefácios". E é muito bem-vinda. Entre nós, poucos são os textos de Nietzsche a que se tem acesso, e raras as traduções confiáveis. Além do mais, ao contrário do que se poderia supor, não se trata aqui de uma obra menor. "Cinco Prefácios" vale pelo que é: um escrito em que o filósofo inicia um diálogo consigo mesmo, um diálogo que perseguirá ao longo de toda a sua obra.

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