São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
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"Eva Perón" mostra o avesso de "Evita"

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Desde o subtítulo brasileiro ("A Verdadeira História"), "Eva Perón" já existe em oposição a "Evita", de Alan Parker.
"Evita" não é a verdadeira história. É uma versão terceiro-mundista do sonho americano (moça pobre vira poderosa e defende os pobres), ou um "Mágico de Oz" latino-americano (Argentina, reino da fantasia desvairada), ou um mito encarnando em outro (Madonna/Eva).
E "Eva Perón", o que seria? Com efeito, O diretor Carlos Desanzo tenta ser verossímil ao reconstituir a vida da ex-primeira-dama argentina.
Mas, essencialmente, a imagem construída por Desanzo procura enfatizar em Eva tudo o que o peronismo atual se empenha em abafar: a ligação com os sindicatos, a hostilidade em relação às oligarquias e aos Estados Unidos, a preocupação social que a tornou próxima dos pobres (os descamisados), a desconfiança em relação ao Exército e a crença de que o poder de Perón dependia da estreita ligação com o povo (seja isso o que for).
Se Desanzo constrói sua "Eva Perón" em torno desses temas, eles comparecem mais para criar uma Evita verossímil. Não verdadeira.
A verdade da argumentação e da narrativa de Desanzo estão na longa agonia de Eva. Ela morreu de câncer no útero em 1952, circunstância que o filme enfatiza por ao menos três motivos.
O primeiro, de ordem prática, remete ao aspecto novelesco, lacrimoso, tão caro a certa dramaturgia latino-americana. Com isso, enfatiza-se também o caráter passional, trágico, do povo argentino.
Segundo, faz com que o filme se construa num limite entre vida e morte que interessa à manutenção do mito de Eva como emblema.
Ou seja: assim como "Evita" parece dizer algo como "que sua alma descanse em paz", "Eva Perón" dá a impressão, diferentemente, de querer que essa mesma alma vá assombrar as noites neoliberais do presidente Carlos Menem.
Terceiro, permite que boa parte do filme seja narrada em flash-back. Com isso, boa parte dos episódios da vida de Eva Perón (o fato de ser filha ilegítima, por exemplo, é central da história) são referidos ao momento crepuscular de sua vida.
Assim, sua ligação com os descamisados e o ódio às oligarquias (ou seja: as fortunas e a moral estabelecidas) justificam-se pelos problemas por que passou nma infância -e não por uma opção política racional ou mesmo por algum tipo de oportunismo. Têm a vantagem de tornar suas opções viscerais, quase freudianas.
Encontra-se justificada, sobretudo, a operação que procurou levá-la à vice-presidência em 1952 (o que não aconteceu porque a doença já havia sido diagnosticada): Evita é, para o filme, antes de mais nada uma mulher que queria se legitimar pessoalmente.
Com isso, "Eva Perón" coloca um pouco em surdina -embora respeitosamente- o caudilho Juan Domingo Perón, que governou o país de 1946 a 1955.
Perón é visto como um homem hesitante entre a condição de militar e a opção política ("o coronel do povo") que o levou ao poder.
Para todos os efeitos, o cérebro do casal é Evita.
Ela é quem se preocupa em pensar a diferença entre uma ditadura e uma revolução. É ela que se encarrega de conciliar os vários pólos do peronismo (o da direita, representado pelo serviço secreto, e o da esquerda, representado pelo deputado acusado de comunismo).
Em suma, "Eva Perón" parece ter por objetivo construir, pelo mito de Eva Perón, a mitologia de um peronismo original -plebeu, ilegítimo, nacionalista, voltado às questões sociais.
Duas faces de Eva
Embora as duas visões -a de "Evita" e a de "Eva Perón"- possam ser colocadas lado a lado, nenhuma chega a dar conta inteiramente dessa personagem carismática, complexa e inserida num momento também dramático e complexo da história argentina.
É certo, porém, que "Eva Perón" nos aproxima de uma Eva palpável, de carne e osso (também em características bem pessoais: enérgica, atrevida, bem-humorada), que "Evita" oblitera.
É verdade ainda que para aceitar este filme -e apreciar o que tem de informação- talvez seja preciso relevar o que há de tacanho nele.
É possível relevar esses defeitos, graças à aura da personagem, à curiosidade que desperta e ao caráter delirante de certos episódios (como o momento em que, já à morte, dispõe-se a participar de um desfile em carro aberto). Não é um motivo menor de interesse a interpretação de Esther Goris, uma ótima Evita.

Filme: Eva Perón - A Verdadeira História
Produção: Argentina, 1996
Direção: Carlos Desanzo
Com: Esther Goris, Victor Laplace
Quando: a partir de hoje, no Cinearte 2

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