São Paulo, sexta-feira, 14 de março de 1997
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UM TRECHO

"Apanho também o cachimbo novo, reúno aos demais, no compartimento especial da estante. Volto ao quarto e estou nu. A banheira está cheia e será um alívio cair dentro dela. Olho-me no espelho e vejo a minha nudez. Ali está: um homem nu e abandonado que cumpriu sua missão de viver 40 anos -o espaço suficiente para a geração do deserto preparar-se para a Terra da Promissão. Não me preparei para nada, não tenho pela frente a perspectiva de um deserto ou de uma promissão. Meu futuro é mais modesto, embora mais confortável: escrever sobre um bidê. Poderia evitar tudo isso e -nu como estou- estou pronto para o salto. Bastará abrir a janela e deixar esta nudez esborrachar-se no asfalto. Causarei transtornos lá embaixo, dois suicidas na mesma rua, quase que um em cima do outro, suspeitarão que somos pederastas e que nos matamos por amor ou desamor, e eu, estando nu, levarei desvantagem nas suposições gerais: este é o ativo, porque está vestido, aquele outro, o que está nu, é o passivo.
Voz passiva de afogar é afogar-se. Escritor afoga-se na banheira diante de um bidê complacente. Não, o bidê não é complacente, é compreensivo. Complacência equivale a cumplicidade e não vejo em que um bidê possa ser cúmplice. Já o bidê compreensivo é um bidê que compreende as coisas.
Eis o bidê: uma problemática existencial. Você precisa preocupar-se com a problemática social, a existencial já passou de moda. Leia Lukács, leia Goldmann. Esfrego sabão em meu pênis e não me sinto obrigado a uma problemática social ou existencial. Confiro mais uma vez se sou ou não circuncidado, agora, lembrando o dia todo, vejo que tanto eu como o pai fizemos a mesma pergunta obscena. Eu perguntei àquela moça que veio aqui, pela manhã: quer ver? Se ela dissesse que queria eu não teria coragem de lhe mostrar."

Trecho de "Pessach, a Travessia", de Carlos Heitor Cony, que chega às livrarias na próxima semana.

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