São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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A aranha é nossa...

ROBERTO CAMPOS

Não é piada, embora pareça. Tamanho é o despropósito, que até mereceu do sempre ponderado Herbert Levy um sério artigo na "Gazeta Mercantil". A história é a seguinte: a Polícia Federal prendeu no Rio de Janeiro, por crime inafiançável contra a fauna silvestre (um a três anos de cadeia), um alemão, Marc Baumgarten. O gringo estava levando para o seu país (devidamente acondicionadas, com os requisitos de praxe) 112 aranhas, quase todas caranguejeiras. Imediatamente, começou o desvario: suspeitas de que seriam utilizadas em pesquisas de drogas terapêuticas e -detalhe mais hediondo- que poderiam ser patenteadas por algum laboratório estrangeiro!
Ridículo não mata, porque, se matasse, não precisaríamos de anticoncepcionais e estaríamos hoje com uma população saudavelmente menor. Mas o país precisa de mais respeito. Em matéria de polícia, em seus vários níveis, o melhor que o brasileiro pode dizer é que não aparece na hora em que há bandido assaltando o cidadão honesto. Presume-se, mas não é certo, que em algum canto haja alguém que mande em alguém, dando sentido de proporção às nossas "autoridades".
Aranha é o que não falta nesta terra. Alemão é tradicional pesquisador, e o Brasil deve, entre outros, a Spix e a von Martius uma contribuição extraordinária no campo científico. E a possibilidade de estudar aracnídeos e outros bichos está aberta a quem o saiba fazer no mundo inteiro. Nenhum grande laboratório, universitário ou de qualquer grande empresa farmacêutica, teria a menor dificuldade para reproduzir tantas quantas fossem necessárias.
Agora, imagine-se só a impressão no exterior: o Brasil põe a polícia em cima para impedir pesquisas, isto é, para impedir conhecimentos que são benéficos a toda a humanidade, apenas porque acha que alguém pode patentear esses conhecimentos. Como se o importante fosse o bicho, eventual objeto de pesquisa, e não o formidável edifício universitário, científico e tecnológico que torna possível aplicar, a objetos do conhecimento, métodos universais, acessíveis a todos os pesquisadores do mundo. Que a Coroa portuguesa não quisesse a divulgação dos "Diálogos" de Antonil era compreensível, no mercantilista século 18, porque sempre poderia outra potência ficar tentada a vir se estabelecer "manu militari". Mas aranhas?...
O espírito da reserva de mercado, mais a ignorância militante, mais a total desinformação e falta de desconfiômetro, mais o descontrole total em que ficam essas "autoridades" dão nesse tipo de ação, que, inevitavelmente, lá fora, cobre o país de vergonha. Imagine só as finanças internacionais, o mundo diplomático, a comunidade científica, lendo essa notícia: o governo brasileiro põe na cadeia quem se meteu a pesquisar um bicho assaz abundante nos 8 milhões e 600 mil quilômetros quadrados do nosso ufanismo! Logo o Brasil, que tem uma terrível fama de criminalidade urbana impune, mobilizando-se para prender -um bandido? Nada disso; coisa muito pior, um possível pesquisador!
A idéia de que o governo tem de impedir que alguém, no estrangeiro, tenha a "ousadia" de fazer alguma pesquisa sobre plantas ou bichos nossos, por corriqueiros e bestas que sejam, é um desastre para o nosso bom nome, lá fora, no mundo civilizado, onde ciência é levada a sério. E quando se pensa que o presidente é Fernando Henrique Cardoso, um intelectual da melhor qualidade, e o ministro da Justiça é Nelson Jobim, jurista e cultor da lógica matemática -ambos insuspeitos de qualquer contaminação pela burrice circunjacente-, é o caso de perguntar: quem está mandando neste país? No meu tempo, os delegados de polícia eram "doutores" e pareciam fazer jus ao diploma. É verdade que o ministro Paulo Renato mostrou (prestando, com isso, um relevante serviço ao país) que nossa formação acadêmica ao mesmo tempo massificou-se e degradou-se. É possível que algum investigador com luzes de vulcão extinto tenha reação nacionalista contra os riscos do conhecimento científico alheio. Mas decisões como essa não podem ficar por conta de inscientes. Será o caso de pedir ao Paulo Renato que faça um "provão" para as "autoridades" federais?
Em matéria de lei mal feita, andamos num festival. Há tempos, um pobre diabo que matou um anu (isso mesmo, anu, praga) com uma espingardinha de ar comprimido foi preso "inafiançável". Isso, neste país onde bêbado atrás do volante é refresco, onde índio vende mogno a madeireiro clandestino, e traficante fuzila gente nas favelas! Mas, enfim, a cretinice do anu não transpôs nossas fronteiras. Mas prender alemão dessa maneira vai repercutir lá fora. E logo na Alemanha, país tradicional da excelência científica, que por acaso é também um dos maiores investidores, fornecedores de tecnologia e importadores de produtos brasileiros.
É claro que alguma ordem tem de ser imposta. Temos uma legislação sobre expedições científicas, com aspectos bons e maus, mas sempre um conjunto de normas. Pode ser que se justificasse apreender as aranhas do alemão, se a papelada não estivesse em boa ordem. Nossos burocratas são papirófilos e papirófagos! Mas isso estaria dentro da regra do jogo, sem expor o país ao vexame da reserva de mercado da pesquisa sobre caranguejeiras...

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