São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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O sapo veio antes da ovelha

FRANCISCO JERONYMO; SALLES LARA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A notícia da produção da ovelha Dolly causou uma enorme comoção nos meios de comunicação. Surgiram inúmeras reportagens e estardalhaço desmedido, provocado por um conhecimento superficial ou impreciso do assunto.
Não há dúvida que um avanço tecnológico enorme foi alcançado. Ele não dispensa, contudo, o uso de óvulos. Estes são importantíssimos para o processo, pois estão cheios de produtos gênicos maternos, formados antes da concepção, os quais, ao serem acionados em cadeia, permitem o desenvolvimento harmônico de um óvulo fecundado (ovo) em um ser perfeito. Nesse caso, o que ficou dispensável foi o macho!
A tecnologia usada para produzir a tão famosa ovelha não é completamente nova. Métodos semelhantes já haviam sido usados originalmente por J. B. Gurdon no Reino Unido, em 1962, em experimentos com um sapo sul-africano.
Para minha surpresa, esse fato foi ignorado por quase todos os comentaristas que li ou ouvi. Gurdon destruiu o núcleo de um óvulo e o substituiu por um núcleo de uma célula do intestino de um girino, conseguindo obter girinos normais, como no caso da ovelha.
É verdade que, nesse caso, sapos adultos não foram obtidos. Isso pode ser devido ao fato de Gurdon ter usado radiação ultravioleta para inativar o núcleo do óvulo receptor, o que pode ter interferido na reserva de ácidos ribonucléicos maternos, que só há poucos anos sabemos serem muito importantes. Pode ser também que os núcleos usados para serem inseridos no óvulo desnucleado não estivessem na fase certa do ciclo celular.
Qual o significado científico da experiência de Gurdon? Ela prova que o núcleo já diferenciado de uma célula corpórea (somática) pode reverter ao estado "primitivo" quando inserido em um óvulo desnucleado; ele passa a agir como o núcleo de um óvulo recém-fecundado. Esse sim foi um desenvolvimento científico significativo, feito numa época bem anterior ao surgimento da biotecnologia tal como hoje a reconhecemos.
A vida pode ter surgido neste planeta a partir de um evento único, que teve sucesso e foi selecionado em detrimento de outros possíveis eventos pelo princípio da sobrevivência do mais forte (a seleção natural), descoberto por Darwin no final do século passado. É isso que permite a universalidade na aplicação dos princípios fundamentais da biologia: o que vale para um sapo deve valer também para mamíferos!
Trabalhando no interior desse universo conceitual, a ciência tem progredido com tal velocidade que passou a ser tratada como se fosse tecnologia. Daí a ignorância de fatos científicos experimentalmente estabelecidos, que têm uma vida muito mais longa que a tecnologia que podem gerar. Mesmo o termo "clone", aplicado à ovelha, não é estritamente correto, pois essa palavra é empregada para designar a descendência de uma única célula, por divisão assexuada, o que evidentemente não é o caso de Dolly.
A utilidade de Dolly
Quais as vantagens oferecidas por Dolly? Dois exemplos. Se a "mãe-irmã" da ovelha tivesse incorporado em seu patrimônio genético um gene para a produção de uma proteína como o fator 8 humano (deficiente nos hemofílicos), um litro de seu leite deveria valer cerca de R$ 2.000. Esse seria o valor de fator 8 puro que conseguir-se-ia extrair desse litro de leite. Hemofílicos poderiam ser tratados sem reações adversas; indústrias ganhariam muito dinheiro.
Se tivéssemos maior número de animais produzindo o mesmo tipo de leite, clonados, teríamos uma queda em seu preço, que ficaria mais próximo dos R$ 0,36 que nosso produtor rural recebe atualmente pelo leite de suas vacas.
Além do mais, seria possível conseguir animais tão valiosos quanto a "mãe" inicial utilizando técnicas de transferência de embrião que já são comuns em nossa pecuária aqui no Brasil. Além disso, animais geneticamente iguais seriam de grande utilidade para a biologia experimental, fornecendo controles que seriam exatamente iguais aos experimentais e, portanto, poderíamos avaliar perfeitamente os resultados sem a interferência da variabilidade genética individual. "Clones" de animais com características comerciais desejáveis seriam interessantes, mas creio que será mais econômico, pelo menos em futuro próximo, que eles sejam produzidos por métodos convencionais.
Quais as desvantagens do uso indiscriminado dessa tecnologia? Pelo que sei, coisa semelhante vem sendo feita com plantas de interesse comercial, também há muito tempo. Provavelmente isso acontecerá também com animais. Não é demais alertar, no entanto, que o uso indiscriminado de técnicas desse tipo seria muito oneroso e acabaria com a variabilidade genética que é essencial para a evolução biológica das espécies.
Clonagem e lei É possível fazer "clones" humanos usando a mesma tecnologia? Creio que sim, se tentássemos. Seria uma questão de tempo e dinheiro para adequar a tecnologia ao caso humano. Isso, porém, não é permitido pela lei 8.974, sancionada pelo presidente da República em 5 de janeiro de 1995.
Assim, há dois anos são considerados crimes passíveis de pena de prisão por três meses a um ano a manipulação genética de células germinais humanas, a intervenção em material genético humano "in vivo", exceto para tratamento de defeitos genéticos, respeitando-se princípios éticos, tais como o princípio de autonomia e o princípio de beneficência, e com a aprovação prévia da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança.
Parece-me, portanto, que o presidente não precisa se preocupar com o assunto: pode dormir sossegado contando ovelhas ou pensando na reeleição, sem apoquentar-se com o texto de mais uma medida provisória a ser carimbada pelo nosso eficiente Congresso.
Qual seria a verdadeira idade biológica de um "clone"? Não podemos responder essa pergunta porque não houve tempo para fazer experiências sobre isso. Acredito, entretanto, que, se houve reversão do núcleo somático, ela deve ter sido completa e, assim, imagino que um "clone" jovem tenha a idade que apresenta. Essa tecnologia permitiria a imortalidade de um indivíduo, se ele for reiteradamente "clonado".
Qual a importância dessa descoberta para a ciência brasileira? Ela tende a aumentar o enorme fosso científico-tecnológico que nos separa do assim chamado Primeiro Mundo. Entretanto, creio que nossos cientistas não devem se preocupar muito com isso. Eles devem aproveitar melhor o fato de não estarem sujeitos à enorme pressão para publicar seus resultados e dedicarem-se mais a problemas importantes que, entretanto, não são muito visados no momento no Primeiro Mundo.
Teriam assim, maior oportunidade de descobertas originais. Precisam tentar dar uma utilidade para suas descobertas ajudando o desenvolvimento de nossa tecnologia. Têm, ainda, a obrigação de estarem muito bem informados sobre os desenvolvimentos científicos e tecnológicos para assessorar a quem de direito na hora das negociações, a fim de que nossa sociedade e nosso governo não sejam enganados. Tarefa inglória; alguém se lembra como os críticos do Projeto Sivam foram tratados? Foram chamados de burros e os inteligentes acabaram comprando uma tecnologia quase obsoleta e por um preço muito caro. Mas, afinal, nós temos mesmo dinheiro para jogar fora!

Francisco Jeronymo Salles Lara, 71, doutorou-se em biologia pela Universidade Stanford (EUA). É professor-titular aposentado do Instituto de Biologia da USP, membro-titular da Academia Brasileira de Ciências e membro da Ordem Nacional do Mérito Científico, classe da Grã-Cruz.

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