São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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Além da ética e da repugnância

LAYMERT GARCIA DOS SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

A invenção de Dolly abre de fato a possibilidade de clonagem de seres humanos. Aparentemente todos parecem concordar que a idéia é "repugnante", Ian Wilmut (o "pai" de Dolly) inclusive. Convém, entretanto, deixar de lado a hipocrisia: a clonagem humana é um desdobramento lógico do próprio desenvolvimento da biotecnologia e se inscreve "naturalmente" no seu horizonte.
No capítulo intitulado "A Clone Just for You", Andrew Kimbrell, em seu interessantíssimo livro "The Human Body Shop - The engineering and marketing of life" (A Venda do Corpo Humano - A Engenharia e o Marketing da Vida), afirma que a clonagem decorre do fascínio dos cientistas do século 19 pela partenogênese (reprodução natural assexuada).
Mas, do ponto de vista teórico, o primeiro passo importante para a reprodução artificial da vida foi dado em 1931, portanto 20 anos antes de serem descobertas a estrutura e a natureza dos genes, quando Ernest Messenger escreveu: "Em princípio, cada célula de um organismo comum contém (...) a virtualidade da espécie e da raça". Sete anos depois, diz Kimbrell, baseando-se nessa noção, Hans Apermann postulou o experimento "de algo fantástico": remover o núcleo de um ovo e substituí-lo pelo núcleo de alguma outra célula, para ver se o núcleo da célula transplantada reproduzir-se-ia. Segundo Apermann, "tal experimento talvez pudesse mostrar que até mesmo núcleos de células diferenciadas podem iniciar o desenvolvimento normal no protoplasma do ovo".
A idéia começou a concretizar-se em 1952, quando Robert Briggs e Thomas King clonaram uma rã; depois vieram mamíferos inferiores, e Dolly... à espera do próximo passo: a clonagem de humanos. Kimbrell demonstra que tal ilação não é descabida: "Em 1952 foi produzido o primeiro bezerro com sêmen congelado. Menos de uma década depois, o esperma congelado tornou-se a matéria-prima da inseminação artificial humana. Nos anos 60, os cientistas começaram a criar bezerros transferindo embriões para vacas "mães de aluguel". Nos 80, a transferência de embrião, inclusive em mães de aluguel humanas, tornou-se uma prática rotineira nas clínicas de fertilização dos Estados Unidos e do mundo todo. E, em 1973, foi produzido o primeiro bezerro de um embrião congelado. (...) Hoje centenas de crianças estão nascendo pelo mesmo método, desde que ocorreu o primeiro nascimento em 1986. (...) Se a clonagem seguir o padrão, poderemos ver os primeiros embriões de clones humanos na próxima década."
Ao romper a inviolabilidade da vida, o biotecnólogo rompeu a ordem biológica. Tudo passa a ser válido. A mesma empresa que inventou Dolly, a PPL Therapeutics, já havia criado Tracy, a ovelha que recebeu genes humanos para produzir AAT, uma proteína humana agora testada contra a fibrose cística. A literatura especializada está cheia de experimentos transgênicos que ignoram as barreiras entre as espécies animais e vegetais, quando não inserem células humanas em animais e de animais em vegetais. No catálogo dos feitos da biotecnologia há de tudo: desde a mulher-farmácia, que produz proteína no leite para a indústria farmacêutica, até os monstruosos bezerros "freak", desastrada clonagem feita pela empresa Grenada para possibilitar "eficiência industrial à reprodução animal", passando pelo "Geep", fusão de carneiro (sheep) com bode (goat).
Se a inviolabilidade da vida foi rompida no seu nível mais íntimo e ínfimo no seu nível molecular, por que o corpo humano e, por extensão, o próprio homem escapariam desse processo? Jeremy Rifkin, que desde os anos 70 tem acompanhado cuidadosamente o progresso biotecnológico e os riscos imensos que ele comporta, desencadeou, no dia em que a clonagem de Dolly foi anunciada, uma campanha mundial pela imediata adoção, por todos os países, de uma lei que proíba a clonagem de seres humanos. Rifkin sabe que só uma proibição absoluta poderia evitar algo que põe em jogo a própria civilização.
Em artigo publicado no jornal "USA Today", ele escreve: "A clonagem humana representa um ponto de ruptura para a civilização. (...) As implicações são incalculáveis. O próprio ato da concepção, que até agora requeria a união do homem e da mulher, do esperma e do óvulo, tornou-se mera opção. Devemos lembrar que o alicerce da civilização humana funda-se na união do homem e da mulher na família, no parentesco e na ordem social extensa. No "admirável mundo novo" da clonagem humana, como vamos definir família e sociedade?"
A ruptura da ordem biológica é, também, a ruptura da ordem civilizacional. Não por acaso os juristas têm se mostrado alarmados com a erosão dos direitos e do Direito, que é concomitante à erosão da diversidade biológica e ao avanço da biotecnologia.
Antes de Dolly, os direitos humanos e o direito à vida já estavam sendo minados pelos direitos de propriedade sobre células, sangue e tecidos desde que John Moore perdeu seu processo para reaver a propriedade de suas próprias células em 1990; que a Systemix Inc. conseguiu patentear, em 1991, células da medula sem qualquer manipulação ou engenheiramento; e que as autoridades americanas tentaram patentear células de índios do Panamá, Ilhas Salomão e Papua-Nova Guiné.
Antes de Dolly, a discussão girava em torno da transformação de parcelas do corpo humano em "commodities" e da garimpagem genética -o que já soava absurdo para a velha humanidade. Hoje as questões pertinentes levantadas por Adam Penenberg no artigo "US Patent Law can't cope with human clones" mais parecem saídas da ficção científica: seriam os clones humanos patenteáveis pelo clonador, ou teriam eles direitos de propriedade intelectual sobre seu material genético? Já que são produto de uma duplicação e não de uma procriação, podem eles ser considerados humanos do ponto de vista jurídico?
E o que dizer dos híbridos humano-animais? O artigo 13 da Constituição americana proíbe a escravidão; portanto seres humanos não podem ser apropriados por meio do patenteamento. Entretanto, pergunta Penenberg, quanto de uma pessoa pode ser patenteado até que o artigo 13 passe a vigir? Pela lei norte-americana, pode-se patentear células e até órgãos humanos. Se órgãos podem, por que não uma mão ou o clone de uma linhagem de embriões?
O próprio caráter das perguntas já expressa o momento-limite que estamos vivendo, o da a ruptura da inviolabilidade da vida na Terra.
Por isso mesmo, nunca foram tão fortes as palavras de Nietszche-Zaratustra: "Outrora a ofensa a Deus foi a ofensa maior, mas Deus morreu, e com ele morreram também esses ofensores. Hoje o mais terrível é ofender a Terra, e estimular as entranhas do insondável superiores ao sentido da Terra!"

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