São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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Como se faz uma tese

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Todo estudante de pós-graduação já leu ou pelo menos ouviu falar de um livro de Umberto Eco, publicado aqui pela Editora Perspectiva, chamado "Como se Faz uma Tese". Trata-se de um guia bastante convencional para aspirantes ao mestrado ou ao doutorado, que ensina, por exemplo, a organizar a bibliografia, a fazer fichas de leitura, coisas do gênero.
O livro "Modernismo no Rio de Janeiro", de Monica Pimenta Velloso, resultou de uma tese de doutorado, defendida no departamento de história social da USP. Com o risco de parecer implicante e injusto, julgo possível tomá-lo como exemplo das várias estratégias, cacoetes e enfoques típicos da produção universitária média em ciências humanas no Brasil.
Esta resenha não pretende ser uma peça acusatória e maldosa contra a autora, que visivelmente se dedica com amor e inteligência a seu objeto de estudo, mas sim uma crítica ao estilo universitário corrente, do qual ela é vítima; escrevo uma espécie de "Como se Faz uma Tese" ao contrário. Vamos por tópicos.
1) O Título. "Modernismo no Rio de Janeiro" não é, a rigor, um estudo sobre literatura, pintura, escultura, música, teatro modernistas na antiga capital. Monica Velloso pesquisa uma revista em particular: a revista satírica "Dom Quixote", publicada nos anos 20, e trata de intelectuais boêmios cariocas, como José do Patrocínio Filho, Paula Nei, Bastos Tigre. O humorismo e a caricatura da época (J. Calixto, Raul Pederneiras) são seu verdadeiro objeto.
Mas é típico das teses universitárias buscarem o máximo de generalidade em seus títulos, contrastando com uma grande especificidade na pesquisa. Um estudo sobre mutirões de construção na favela X tende a ganhar o nome de "Cidade, Moradia e Mobilização Popular"; se o cotidiano em três borracharias de São Paulo for pesquisado, a tese provavelmente se chamará "Trabalho, Cotidiano e Sociedade em São Paulo"... Assim se faz uma tese.
2) Justificação da Pesquisa. Monica Velloso procura, com acerto, relativizar a idéia de que o movimento modernista de 1922 em São Paulo foi um fenômeno isolado, sem precedentes. Quer "atentar para outras modalidades e dinâmicas, enfim, outros sinais de modernidade no conjunto da sociedade brasileira". Seria preciso "desvincular o modernismo da idéia de movimento cultural organizado por uma vanguarda intelectual", reavaliando também "a inserção dos intelectuais cariocas na dinâmica do cotidiano urbano".
O humorismo e a caricatura, assim, seriam respostas estéticas tipicamente "modernas" ao progresso e à urbanização, cabendo ver os chargistas cariocas dos anos 20 como representantes de uma vertente inovadora que a hagiografia em torno do modernismo paulista costuma minimizar.
3) Declarações de intenção. Todo autor de tese é por definição inseguro; sabe que será julgado. Antes de cada passo no raciocínio, está portanto obrigado a dizer para onde vai. Como a "demonstração" da idéia central costuma ser difícil de fazer (ver tópico anterior), cumpre explicitar com frases e mais frases aquilo que a pesquisa, por si mesma, não consegue tornar evidente.
É assim que, já na pág. 90 do livro, vemos a autora uma vez mais anunciando seus propósitos: "Proponho resgatar a caricatura como um dos sinais da história, ou, mais especificamente, como um dos indícios que possibilitam pensar o modernismo no Rio de Janeiro".
4) Repetições. Eis como continua o trecho citado acima: "Por seu caráter de impacto, condensação de formas, debate sobre o cotidiano, e principalmente por sua agilidade na comunicação, o humor apresenta-se como linguagem amplamente identificada com as demandas da modernidade". Isso na pág. 90.
Eis o que reza a pág. 41 do livro: "O humor é um dos sinais mais expressivos da modernidade carioca, funcionando como pólo unificador e de identidade intelectual. Por seu caráter de impacto, condensação de formas, ilustração do cotidiano e agilidade na comunicação, apresenta-se como uma linguagem amplamente identificada com as demandas da modernidade".
Acidentes como este acontecem. Sabe por quê? Porque nem a autora se lembra exatamente do que disse. O texto universitário é tão pastoso e dá tanto trabalho a quem escreve e a quem o lê, que a atenção se perde. E como não estamos às voltas com uma demonstração lógica, científica, perde-se a diferença que deveria existir entre idéia central, exemplo dessa idéia, comprovação do enunciado, projeto da pesquisa, explicitação das intenções do autor, prefácio e conclusão. Assim se faz uma tese.
5) Modéstia. É essencial nesse tipo de trabalho. No final do livro, a autora afirma com simplicidade: "A idéia aqui é retomar e desenvolver alguns pontos que me parecem fundamentais na reflexão. Quero deixar claro que outros eixos poderiam ser tão relevantes quanto estes, mas a proposta é explorar determinados atalhos, na perspectiva de alcançar um horizonte reflexivo mais amplo sobre a problemática de nossa modernidade". Estou citando Monica Velloso, mas quantas outras teses de doutorado não seguem o mesmo modelo? "Outros eixos poderiam ser tão relevantes quanto estes..." A frase nos leva ao sexto tópico.
6) Anticientificismo. Nada é real, tudo é construção. Não há objetividade, não há fatos, só interpretações. Quando Nietzsche escreveu isso, imaginou estar bagunçando o coreto intelectual. Não sabia que estava na verdade facilitando a vida de muitos pós-graduandos, que repetem a ladainha. Monica Velloso diz: "Historicamente é inviável a idéia de um documento-verdade, capaz de desvendar e trazer à tona a realidade". Até aí, tudo bem; de fato, cada documento histórico -um discurso presidencial, por exemplo, reflete preconceitos, interesses específicos, vontade de ocultar ou evidenciar determinados fatos. A autora cita então o historiador Jacques Le Goff: "Nesse sentido, afirma Le Goff, 'todo documento é mentira'±". Certo, desde que se saiba, por comparação, o que é verdade. Mas surge aí uma conclusão mirabolante da autora: "Mentira porque não passa de construção subjetiva, elaborada pela mente do historiador". Assim se faz uma tese.
7) Elogio do fragmentário. Como toda história é "construção", a idéia de um trajeto linear, de uma sucessão temporal, de uma lógica interna aos acontecimentos é descartada. Citar Walter Benjamin é sempre importante nesse contexto. Carlo Ginzburg também ajuda. Mas vejamos como a autora "trabalha esses conceitos".
Lembra que "não há história dotada de sentido unívoco e triunfalista, baseada na idéia de continuidade. A história torna-se então uma 'obra em aberto' e, enquanto tal, não pode ser interpretada em definitivo". Certo. Mas a autora continua: "É justamente esse caráter inacabado que faz com que seu sentido esteja presente nos lugares mais imprevistos: nos interstícios da ação humana é que se inscreve a história". Com perdão da ingenuidade, cabe a pergunta: que sentido é esse, "presente nos lugares mais imprevistos", se sabemos que a história não tem sentido unívoco? "A história", prossegue a autora, "foge a uma explicação linear pontuando sua presença nos indícios, nas pistas e nos sinais". Outra pergunta ingênua: indícios de quê? Pistas de quê? Sinais de quê, se não é possível explicar coisa nenhuma?
Mas a resposta é fácil, trivial, típica na atual produção universitária. Resume-se a uma única palavra, que merece outro tópico.
8) Resgatar. Toda pesquisa "resgata" alguma coisa. Não se trata de explicar, interpretar, entender. Trata-se de resgatar. Resgatar é uma atividade que a rigor se resume à citação das fontes primárias, seguida de outra atividade muito frequente, que é reorganizar os trechos citados segundo uma lógica que não é a da demonstração ou da explicação, mas a de uma divisão temática (o Carnaval; a cidade; a política; os bares e cafés, no exemplo que estou tomando). A essa reorganização se dá, em geral, o nome de "reconstrução" no jargão acadêmico.
Há outro aspecto importante nessa tarefa de "resgatar". Implica certa complacência com o objeto "resgatado". A idéia de uma "história dos vencidos" (citar Benjamin de novo) envolve uma atitude na maior parte das vezes acrítica, um pouquinho sentimental. Como, por definição, o pesquisador contemporâneo está se contrapondo às versões oficiais da história, privilegiando grupos e pessoas marginalizados pelo sistema, o esforço crítico já foi dado de antemão, pela escolha do objeto. Não é preciso fazer muito mais além de...
9) Paráfrases. Todo texto, todo documento, depois de citado deve ser repetido com outras palavras. Assim, a autora descreve uma caricatura de Kalixto a respeito da morte de Emílio de Menezes: "Gordo, com cara de bonachão, Emílio se equilibra precariamente nas nuvens devido à bagagem excessiva que leva (...) debaixo do braço, um tremendo estoque de garrafas de bebida. Leva também um mensageiro de cartas e mais uma penca de cachorros".
Segue-se o comentário: "Tal caricatura sintetiza com perspicácia a vida de Emílio: seu gosto pela bebida, pelas mensagens satíricas e seu amor aos cachorros, que ultimamente preferia aos homens".
10) Explicar o óbvio. Sempre que alguma coisa não desperte maiores questionamentos, cumpre buscar o caminho mais tortuoso e longínquo para chegar ao ponto de destino, que é também o ponto de partida. A autora estuda uma revista humorística chamada "Dom Quixote". Por que "Dom Quixote"? Aqui, sim, será preciso buscar uma explicação. Monica Velloso recorre ao folclorista Câmara Cascudo para referir-se "à presença dos personagens cervantinos, notadamente de D. Quixote, na memória popular brasileira, via tradição oral". Há também a presença de correntes migratórias espanholas. De modo que "figuras como as de D. Quixote e Sancho, assim também como episódios da história, acabaram se convertendo em algo extremamente familiar e conhecido".
Isso basta, não? Não. Será necessária uma pesquisa em Madri sobre a presença da figura de D. Quixote no modernismo espanhol e nas revistas latino-americanas; Unamuno e Maeztu (citado sempre como Maetzu) serão lembrados. Cabe ainda aludir a um sentimento antilusitano presente no Rio, como possível, mas não suficiente, explicação para que a revista escolha o emblema de D. Quixote.
11) Por último, toda tese que se preze deve fazer Críticas à Seriedade Acadêmica. Há uma "ideologia da seriedade", diz a autora, citando Luiz Baeta Neves, que "evoca para si o status de teoria científica, colocando-se como única, genérica e verdadeira. Ao eleger-se como saber único, essa ideologia exclui as outras modalidades da experiência social". Ver o tópico 6.
Fico por aqui. Se todos esses problemas fossem características exclusivas do livro de Monica Velloso, esta resenha não teria razão de ser. "Modernismo no Rio de Janeiro" não é um mau livro. Ressente-se, apenas, do estilo atual de se fazer teses universitárias, que pode ser detectado em muitos outros exemplares da espécie. Quem já leu alguma que o diga; ou que conteste o que foi dito acima. Pois, naturalmente, meu esforço foi apenas o de recortar determinados traços significativos no objeto de análise, sem pretensão a uma leitura unívoca, que aliás seria inerentemente autoritária e acadêmica, e portanto fechada às inúmeras possibilidades interpretativas que, de forma instigante, se colocam como desafio para quem quer que se proponha ao resgate de experiências e vivências significativas num contexto etc. etc. etc.

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