São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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As imagens do negro

JEAN MARCEL CARVALHO FRANÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE LISBOA

A literatura ocupou, no Brasil oitocentista, um lugar de absoluto destaque. Num país desprovido de instituições que pudessem dar origem a uma sólida e diversificada produção de conhecimento, as então chamadas belas-letras funcionaram como um importante pólo de agregação da inteligência nacional e, consequentemente, como um veículo privilegiado para a expressão daquilo que, a partir do século 19, passou a ser definido como cultura brasileira. Foi em grande parte nas páginas dos nossos cronistas, sermonistas, dramaturgos, romancistas e poetas que o país, ou melhor, uma certa idéia de país e de povo, foi forjada e divulgada.
Os africanos e seus descendentes, figurantes de primeira hora dessas importantes páginas, não escaparam aos efeitos de tal forja literária. Ao contrário, em se tratando do século 19, os tipos negros vinculados pela literatura foram fundamentais para a elaboração da imagem social do escravo e da escravidão. Mais que isso, esses construtos literários penetraram de tal modo no imaginário nacional que, ainda hoje, continuam a influenciar a maneira como a nossa sociedade representa a raça negra.
Quando buscamos mapear esses tipos negros da nossa literatura, a obra de Castro Alves ocupa um papel sobremodo importante. Do ponto de vista da história da literatura, essa importância é bastante conhecida e reconhecida. Como ensinam os nossos manuais, dois livros do poeta baiano, "A Cachoeira de Paulo Afonso" (1876) e "Os Escravos" (1883), tiraram a escravidão e o negro do rol dos assuntos poéticos periféricos e os trouxeram para o primeiro plano da lírica nacional. A sua obra, como legitimamente se apregoa, é uma espécie de clímax do lento e progressivo movimento de valorização poética do negro, movimento que se iniciou na década de 30, com Gonçalves Magalhães, e ganhou forte impulso a partir da década de 50.
Menos evidente é o papel dessa obra na construção da imagem social do escravo. O poeta nem foi o criador da maioria dos tipos negros que aparecem nos seus versos, nem chegou a ser o grande responsável pela divulgação desses tipos na sociedade oitocentista. Sua obra funciona, antes, como um espaço de síntese, no qual são reunidos e desenvolvidos muitos dos personagens criados pela linhagem abolicionista da literatura precedente. É justamente esse caráter de síntese que faz dela um objeto privilegiado para o estudo da representação do negro.
Em linhas gerais, Castro Alves, ao pôr em cena os seus protagonistas negros, torna-se o intérprete por excelência daquele grupo que via o flagelo da escravidão como uma nódoa de sangue no solo da pátria e uma máquina produtora de estropiados sociais. Com a longa série de cativos martirizados que aparecem nos seus versos, o poeta busca não só denunciar o caráter desumano da escravidão como também dar a conhecer os desastrosos efeitos de uma prática que não cessava de produzir potenciais inimigos do corpo social. Se essa trajetória de denúncia parece-nos hoje a única possível, é somente porque não a contemplamos inserida no contexto da literatura oitocentista.
É inegável que os romances, dramas e poesias dessa época são portadores de um certo discurso antiescravista. Contudo, tal discurso, por mais inusitado que possa parecer, optou, na maioria das vezes, por destacar o mal que a presença negra causava à família branca. Tratava-se, quase sempre, de demonstrar, por meio de mecanismos diversos, que a natureza bárbara e lasciva do negro introduzia a corrupção física e moral na higienizada e civilizada casa do branco. A esse respeito, são exemplares os romances "As Vítimas Algozes", de Joaquim Manuel de Macedo, e "Casa de Pensão", de Aluísio de Azevedo, ou os dramas "O Demônio Familiar", de José de Alencar, e "O Escravocrata", de Artur Azevedo e Urbano Duarte.
Na obra de Castro Alves vem à superfície uma vertente outra do discurso antiescravista. O branco corrompido pela barbárie negra é substituído pelo escravo martirizado pela tragédia do cativeiro. Da longa lista de tipos produzidos a partir dessa inversão de perspectiva, merecem menção: o negro humilhado que se revolta com a condição de escravo e se transforma num vingador ("O Bandido Negro"); a criança negra desamparada e cheia de sonhos de vingança ("A Criança"); a escrava enlouquecida devido às torturas do cativeiro ("Tragédia Familiar"); a mãe negra, dividida entre a felicidade da maternidade e o pavor diante do inevitável futuro do filho ("A Mãe do Cativo"); o escravo melancólico e saudoso do seu torrão natal ("A Canção do Africano"); o escravo sofredor que só na morte alcança a liberdade ("A Cruz da Estrada"); o ancião negro abandonado depois de ter sido explorado anos a fio ("Antítese"); a escrava desonrada pelo filho do patrão ("A Cachoeira de Paulo Afonso"); a bela mulata amasiada com o senhor ("Manuela"); e o escravo honrado arrastado para o crime pelas vicissitudes da sua condição ("A Cachoeira de Paulo Afonso").
No universo em que habitam essas vítimas da escravidão, não há lugar para o branco civilizado ameaçado pelo desregramento da conduta negra, não há lugar para a reafirmação daquilo que Joaquim Manuel de Macedo definira, algum tempo antes, como "o quadro do mal que o escravo faz de assentado propósito ou às vezes involuntária e irrefletidamente ao senhor". Aqui, a ênfase recai sobre a selvageria do cativeiro, selvageria sempre pintada com cores romanticamente intensas. Não é por acaso que os símbolos preferidos do poeta são o sangue e os grilhões, nem é por acaso que os seus heróis negros, com raríssimas exceções, têm um fim trágico.
É difícil dizer que papel teve essa poesia na formação de uma mentalidade abolicionista, dizer até que ponto ela transformou um sentimento de piedade por uma raça julgada inferior numa ação antiescravista efetiva. Mais de um século depois, todavia, é possível perceber que, apesar de Castro Alves ter se consolidado como o poeta dos escravos, os tipos negros construídos em sua obra não foram os que mais traços deixaram no imaginário nacional. Findada a escravidão, as vítimas do cativeiro que desfilaram pela sua poesia, se não caíram no esquecimento, tornaram-se simplesmente os símbolos distantes de um momento menos feliz da história pátria. Ironicamente, vida mais longa tiveram aqueles tipos nascidos da literatura que jogou com a oposição entre a suposta natureza bárbara do negro e a sociedade civilizada. A mulata de sexualidade aguçada que corrompe o lar branco, o negro alcoólatra e violento, o preto velho feiticeiro, o negro servil, o mulato indolente e tantos outros tipos produzidos a partir da oposição enunciada deixaram marcas muito mais profundas no senso comum do brasileiro.
Não se trata aqui, como é óbvio, de defender um conjunto de tipos em detrimento de outro. Ambos foram elaborados por escritores que viveram numa sociedade escravocrata e traduzem formas de conceber o mundo dessa mesma sociedade. É importante, porém, ressaltar que a obra de Castro Alves, ao vincular tipos negros diferentes daqueles que se tornaram moeda corrente no nosso imaginário, põe em evidência o caráter de construto desses tipos e reafirma a possibilidade de desnaturalizá-los e reescrevê-los.

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