São Paulo, domingo, 16 de março de 1997
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Síria ainda vive sob sombra de guerras

ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT ON SUNDAY"

Ainda estão construindo o santuário que marca o túmulo de Basil Assad, "chevalier" da Síria, líder de homens, inimigo da corrupção, filho dileto de Hafez Assad, presidente da Síria. Um pára-quedista de boina vermelha e um jovem me cumprimentam diante dos portões da mesquita inacabada em Qardaha. O civil veste negro, com uma gravata negra ostentando a imagem de Basil, na qual o filho do presidente aparece usando óculos escuros. Outro jovem, o guardião do santuário, se aproxima e se nega a dizer seu nome, "porque Basil lança uma sombra sobre todos nós que permanecemos vivos".
"Conte-me sobre Basil", peço ao guardião anônimo. Ele sorri e segura minha mão: "Basil não tinha pares -ninguém se igualava a ele, na qualidade de líder", diz. Enumerou então suas qualidades como esportista, pára-quedista, militar, fundador da Sociedade Síria de Processamento de Dados e engenheiro. "O falecido Basil falava francês e inglês fluentemente. Era modesto. Incorporava a modéstia de nosso presidente, mas nunca se poderia imaginar que o falecido Basil fosse filho de um homem tão importante. Ele combatia a corrupção e incentivava os jovens a voltar-se aos esportes, para evitar os males dos entorpecentes. Simbolizava a moralidade da geração mais jovem."
Eu não conseguia fazê-lo parar -até que perguntei sobre as datas de nascimento e morte de Basil. "Ele nasceu em 23 de abril de 1962. Morreu em 22 de junho de 1994."
Morreu, vale acrescentar, em uma manhã de neblina, na estrada do aeroporto de Damasco -seu carro capotou quando ele corria para pegar um vôo para a Europa.
Toca do Leão
Assad significa "leão", e a placa colocada na entrada de Qardaha me saudara com as palavras: "Bem-vindo a Qardaha, a toca do leão". Lá, os alauitas, minoria da qual o presidente faz parte, formam a maioria da população.
O leão de Qardaha tornou-se leão de Damasco em 16 de novembro de 1970, quando o então ministro da Defesa do governo socialista Baath, Hafez Assad, derrubou seus rivais num golpe de Estado sem derramamento de sangue, que desde então seria conhecido como o "movimento correcional". Abriu seu país à liberalização econômica e política, mas sempre assegurando que seu domínio permanecesse inconteste, com a ajuda de uma implacável polícia secreta.
Mas, agora que seu filho favorito está morto, será que o regime de Assad sobrevive à sua morte? Todos os sírios se perguntam isso.
Assad trouxe estabilidade e unidade ao país, esmagou seus adversários "islâmicos" internos e combateu os israelenses em uma vã tentativa de retomar as colinas do Golã, em 1973, e em uma batalha bem sucedida para impedir Israel de dominar o Líbano, em 1982.
Ele queria deixar a seu filho predileto uma Síria que tivesse reconquistado seus territórios perdidos, que fosse a vanguarda inconteste do mundo árabe. O filho morreu, e a Síria de Assad ainda pede a Israel o retorno das colinas do Golã.
História de guerras
O que a Síria diz a seus soldados, hoje, está inscrito numa citação do Alcorão, no Memorial ao Soldado Desconhecido, em frente ao palácio de Assad, no alto de uma colina em Damasco: "Não pensem que aqueles que foram mortos pela causa de Deus estejam mortos agora. Estão vivos e desfrutando das dádivas de Deus". Na cripta, vários oficiais sírios se aproximam de mim, todos usando bigodinhos e uniformes marrons e cinzentos.
"Sabe o que é isso?" pergunta um deles, apontando um quadro a óleo de um prédio de paredes marrons, com fumaça jorrando pelas janelas. Ele quer testar até que ponto o estrangeiro conhece a história nacional, para ver onde deve iniciar sua narrativa.
O prédio abrigava o Parlamento sírio em 1946, quando foi atacado por tropas de um governo francês que se recusara a abrir mão de seu mandato outorgado pela Liga das Nações, depois do final da Segunda Guerra Mundial; 25 deputados e soldados sírios morreram.
Após a Primeira Guerra Mundial, a Liga das Nações outorgou à França um mandato sobre a Síria, obrigação que os franceses honraram retirando da Síria parte de sua costa Mediterrânea -criando um Líbano dominado pelos cristãos- e destruindo o Exército sírio que havia confiado na promessa feita por Lawrence da Arábia, de independência da Síria em troca de sua ajuda na guerra contra os turcos.
O ministro sírio da Defesa, Ioussef Azmi, liderou sua cavalaria contra os tanques franceses no estreito vale de Maisaloun, na fronteira entre os atuais Líbano e Síria, no dia 24 de julho de 1920.
Os blindados mecanizados do general Henri Gouraud -num prelúdio, que passou em grande medida despercebido, do ataque de tanques alemães à cavalaria polonesa, 19 anos mais tarde- aniquilaram os cavaleiros guerreiros de Damasco e deixaram seus corpos apodrecendo ao sol do verão.
Hoje, a estrada para Maisaloun é uma rodovia de seis pistas, e o túmulo de Azmi fica quase escondido num bosque ao sul.
Quando cheguei ao local, numa fria tarde de inverno, encontrei apenas seu túmulo e um grupo de casas semidestruídas, aparentemente por morteiros, ao lado da estrada principal. Mas também encontrei um ancião que tinha vagas recordações da batalha.
Hamzi Abdullah, que não conseguia lembrar-se de sua própria idade, mas tinha memórias claras de ter passado semanas, quando menino, recolhendo cartuchos e fragmentos de morteiros, após o malfadado ataque da cavalaria árabe em 1920, usava um kuffiah (espécie de turbante) velho na cabeça e não fizera a barba.
"Os franceses vieram de Uadi Nemsi, com suas tropas argelinas e senegalesas", contou. "Havia aviões, também -e nós não tivemos a menor chance. Não durou mais do que algumas horas. Os franceses mataram quase todos que encontraram pela frente.
Um homem mais jovem se juntou a nós. Era um soldado que combatera no Líbano.
"Vou lhe mostrar o lugar onde prenderam as mulheres e Ioussef Azmi", disse ele, e me levou para uma das casas otomanas destruídas ao lado da estrada.
"Foi aqui que os franceses os prenderam. Mas a casa foi quase destruída em 1967, quando os israelenses bombardearam esta área." Assim, parece que os israelenses concluíram o trabalho que os franceses haviam deixado inacabado. Mas não completamente.
Outra guerra
Pois o soldado ainda não concluíra sua história. "Sempre vivi aqui. Em 1982, lutei do outro lado da fronteira, na batalha de Sultan Iacoub -onde capturamos os tanques israelenses- e, no ano seguinte, quando eu estava aqui, em casa, a Marinha norte-americana disparou morteiros contra nós, atravessando o Líbano, e os morteiros do New Jersey caíram sobre as colinas, ali no alto."
Em 1920 os franceses destruíram o Exército árabe em Maisaloun. Em 1967, no final da Guerra dos Seis Dias, os israelenses bombardearam Maisaloun. Outros 16 anos mais tarde, a Sexta Frota norte-americana, dando apoio à força cambaleante da Otan enviada por Ronald Reagan a Beirute, bombardeou a rota pela qual chegavam os suprimentos do Exército sírio, neste mesmo vale de Maisaloun.
Estabilidade
O regime de Assad, provavelmente, está mais seguro hoje do que em 1982, e menos repressivo do que então. Mas a saúde do presidente, que sofreu um infarto em 1983 e se submeteu a uma cirurgia da próstata em janeiro, é motivo de especulação entre seus adversários. Seus inimigos permanecem nas fronteiras da Síria.
Depois de concordar com a fórmula de terra em troca de paz proposta pelo governo Bush, Assad está ouvindo, por parte dos israelenses, que terá de fazer a paz sem o retorno das colinas do Golã.
Os militares israelenses falaram de uma possível guerra com a Síria em seis ocasiões diferentes no ano passado. No último outono, quando Assad transferiu alguns de seus 21 mil soldados do Líbano e posicionou uma brigada armada ao sul da rodovia Damasco-Beirute, para impedir um possível ataque israelense, foi acusado de fazer preparativos de guerra.
Na realidade, foi o único líder árabe a alertar os outros sobre os perigos do chamado "processo de paz" e a falar publicamente de sua desconfiança de que os israelenses, depois de obter concessões dos árabes, decidiriam manter a maior parte dos territórios conquistados em 1967. Foi exatamente o que aconteceu, sob o governo do premiê Binyamin Netanyahu.
Os EUA mantêm a Síria numa lista de países que apóiam o terrorismo, porque Assad permite que grupos violentos que se opõem ao acordo de paz no Oriente Médio mantenham sede em Damasco.
O Reino Unido rompeu relações com o país quando agentes sírios se envolveram numa conspiração para detonar uma bomba num avião comercial da El Al que decolou de Heathrow em 1986.
A Turquia critica a Síria por apoiar o levante curdo no sudeste turco; em dezembro, uma bomba matou 13 sírios num ônibus.
A Síria atribuiu o atentado a Israel, desconfiou dos turcos e falou dos perigos do terrorismo. É fácil fazer um retrato bestial da Síria, ao lado de outros párias favoritos, como o Iraque, a Líbia e o Sudão.
Mas a Síria é importante demais para ser menosprezada tão facilmente. Se um terremoto -político ou militar- sacudir o Oriente Médio nos próximos meses, a Síria estará próxima de seu epicentro.
Feridas de guerra
Os mapas comuns da Síria contêm uma anomalia intrigante. As colinas do Golã, ao sul, são indicadas como pertencentes à Síria -e o são, apesar da ocupação israelense-; ao norte, o território nacional desenhado no mapa se estende até bem além de Latakia, no litoral mediterrâneo.
A cartografia contava uma história esquecida, pois em 1939 o governo francês, ainda em controle da Síria, deu a cidade setentrional de Alexandretta aos turcos, como forma de convencê-los a juntar-se aos aliados na vindoura guerra contra a Alemanha.
Ainda confrontadas com o desafio da paz com Israel, as autoridades sírias se recusam a falar sobre esse território perdido.
Mas deram apoio pelo menos tácito aos curdos que reivindicam um território próprio no sudeste da Turquia, e, segundo a Síria, os turcos, enfurecidos, envenenaram e desviaram rios sírios.
Rio roubado
A acusação síria soa inacreditável, mas é verdadeira. Munido do meu mapa, tentei encontrar o rio Queik, marcado no mapa com um rio largo que atravessa a fronteira turca, passando por Aleppo.
Mas não encontrei nenhum rio na velha cidade murada, nem mesmo um riacho. Mais perto da Turquia, topei com um riacho lamacento passando por baixo das colunas do que fora, muito tempo atrás, uma ponte romana.
No meu mapa era um rio, mas o que encontrei foi um esgoto a céu aberto, negro e espesso, emitindo um odor de enxofre.
Ahmed al Musri, que mora no local, me contou a história: "Há dez anos, mais ou menos, o nível do rio começou a baixar rapidamente", disse ele. "Eu me lembro que acordamos um dia e o rio estava na metade do tamanho normal. Quando tentávamos irrigar nossas plantações com o que restava do rio, elas morriam. Hoje o rio contém venenos de todos os tipos. Veja minha filha."
Amina, 4, aproximou-se timidamente, ostentando manchas vermelhas no rosto. "Os turcos agora só nos mandam água preta, para infiltrar nossos poços. Estamos esperando a volta de nossa água."
O Ministério da Irrigação sírio repetiu o que Al Musri me contara. Os turcos desviaram rios de seus cursos e canalizaram esgotos domésticos e industriais para pelo menos três rios, incluindo o Queik. Um dos rios secou.
Pós-Assad
Enquanto isso, os assuntos internos da Síria continuam sendo objeto de interesse crucial de seus inimigos. Israel retrata o presidente Assad alternadamente como símbolo de estabilidade -quando as conversações de "paz" caminham de maneira favorável a Israel- ou como líder de um regime em potencial desintegração, quando não o fazem.
Como pode um país governado pela minoria alauita sobreviver à morte do presidente, indagam os israelenses? Nikolaos van Dam, diplomata holandês e estudioso do partido Baath sírio, provou que, embora os oficiais e generais alauitas realmente desempenhem um papel importante e até desproporcional no corpo político sírio, eles não excluem do poder, de maneira alguma, os sunitas, majoritários no país, e a minoria cristã.
O presidente Assad tem outro filho, Bashar, mas o homem que terá de manter a Síria unida no caso de o presidente morrer -o vice Abdul-Halim Khaddam- é sunita. Será isso o suficiente para proteger o Estado sírio nos anos turbulentos que ainda estão por vir?
Processo de paz
Fiz essa pergunta a mim mesmo enquanto viajava para Quneira, a cidade síria que os israelenses destruíram sistematicamente quando se retiraram das linhas do cessar-fogo do pós-guerra de 1973, sob o acordo mediado por Henry Kissinger. À minha direita, as colinas do Golã, ocupadas por Israel desde 1967 e a própria base do "processo de paz", apareciam com seus picos recobertos de neve. A recusa israelense em devolver esse território -contrariando as promessas feitas pelos EUA antes da cúpula árabe-israelense de 1991- pode decidir se o Oriente Médio terá guerra ou paz no futuro próximo.
Passei pelas velhas linhas de frente da guerra de 1967, pelas covas escavadas para abrigar canhões na guerra de 1973 e pelos novos muros de arrimo erguidos pelas unidades avançadas sírias.
Retratada como Estado expansionista que apenas aguarda a melhor oportunidade para tomar o Líbano inteiro, a Palestina e até mesmo Israel, a Síria, mais do que se expandir, vem se contraindo, tendo perdido o norte da Palestina em 1918, o Líbano em 1920, Alexandretta em 1939 e o Golã em 1967 -os primeiros por embustes ocidentais; o último, pela guerra.

Tradução Clara Allain

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