São Paulo, terça-feira, 18 de março de 1997
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Dia internacional da outra mulher, com atraso

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O cabelo dela está comprido demais -está sem corte, despontado, feio. No dia quente, chega a ser anti-higiênico. Faço o comentário. Mas ela responde, com um misto de resignação e orgulho, que o marido não gosta que ela corte o cabelo. Mulher feliz.
Eis a mulher feliz, essa que não se importa que seu corpo seja propriedade do homem, e que interpreta isso como simples sinal de amor. Só tem 26 anos, um filho pequeno, veio da Paraíba há pouco tempo.
Hoje é o dia dela. Felicidade não é direito adquirido -é direito assim entregue, doado, com toda a ingenuidade do mundo. É preciso celebrar o dia dessa idiota.
Amanhã, pelo contrário, é o dia de Maria -que olha com um misto de amor e amargura para o último mês decorrido entre os lençóis de sua cama e revê três rostos diferentes, três sexos, três prováveis amores.
Maria vive como quem apenas observa, sem se entregar -sem saber se ninguém a quer ou se é ela que não quer ninguém. Às vezes, tem vontade de que todos se danem e ela volte a ser livre e leve como o pássaro que gostaria de ser.
Embora sabendo que, mesmo passarinho, teria vindo de um ninho. Embora sabendo que passaria a vida toda buscando destruir a poderosa memória do aconchego do ninho.
Depois de amanhã será o dia de Albertina, que está tomando Prozac para depressão. Para ela, é preciso ler um conto de Gabrielle Colette chamado "A Cura", sobre uma mulher que acaba de perder um amor.
Em desespero, ela diz: "Estou com uma raiva terrível dele, porque ele não me ama mais e me deixou... Não sei. Tudo o que sei é que isso é insuportável, insuportável, essa solidão, esse desistir de tudo que já se amou, esse vazio, esse...".
A amiga que vai consolá-la não a ilude, porém. "Espere pela cura, espere o amor acabar. Você está sofrendo muito, mas o pior ainda está por vir." Ou seja: é preciso esquecer quem não te quis. E o processo de cura é mais duro que a doença.
Todas (Albertina, Maria etc.) concordam que é preciso acabar com essa besteira chamada Dia Internacional da Mulher, que só serve de pretexto para matérias de quinta, numa imprensa machista e gay -dois lados da mesma moeda-, pronta para ridicularizar mulher e sexualidade de mulher.
Além disso, o dia de Albertina não poderia ser o mesmo que o da filha do chefe. Feliz é a filha do chefe, a mulher do chefe, sempre, que não precisa provar nada para ninguém. Albertina, só porque é mulher, recebe salário inferior ao de muito pangaré (só porque são homens) da mesa ao lado.
Nem o dia de Maria pode ser o mesmo que o dia da possessiva e covarde Dorotéia ou Cinderela -que abre as pernas para um só e mesmo macho há anos (quando abre), a sensaboria, e se acha resolvida e única amada.
Eu quero um dia só para mim, como um poema que uma amiga fez e me dedicou: "Sul (para Marilene)". Um dia como um poema, para cada uma das outras mulheres:
"Tim, Jim ou Joe" (para Jessica); "Formigas e Rainhas" (para Vanessa); "Telma e Louise" (para Daniela); "A Estranha e Inútil Tarefa de Lavar Calcinhas" (para Mônica).

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