São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 1997
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Tropicalista cria 'cordel hindu'

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Um baiano de Ubaíra acaba de construir uma inusitada ponte entre o cordel nordestino e a Índia.
Há duas semanas, o poeta, violonista e programador visual Rogerio Duarte -um dos mentores do tropicalismo- terminou a tradução do "Bhagavad Gita" (pronuncia-se "bagavad guita").
O texto é um clássico da literatura oriental. Insere-se na tradição védica, aquela que reúne as escrituras sagradas do hinduísmo, a milenar religião dos indianos.
Costuma-se encará-lo como um livro isolado. Mas, na verdade, as 700 estrofes do "Gita" fazem parte de um poema épico bem maior: o "Mahabharata" (diz-se "marrabárata"), que nasceu há cerca de 5.000 anos e soma 250 mil versos.
Muitos especialistas consideram que a epopéia dos hindus forneceu as matrizes para todas as sagas heróicas posteriores, incluindo a "Ilíada" e a "Odisséia", do grego Homero.
Como vê semelhanças entre o épico indiano e a literatura de cordel, Rogerio Duarte, 57, resolveu traduzir o "Gita" de maneira bastante singular.
Verteu os versos do sânscrito ("Uma língua com alto nível de eufonia e musicalidade") para o português usando a métrica dos cordelistas.
O resultado deverá chegar às livrarias em julho, sob o título de "Canção do Divino Mestre". A Companhia das Letras se encarregará da publicação.
Caetano Veloso -que prometeu escrever o prefácio- já fez a revisão métrica do texto, com auxílio do compositor Carlos Rennó.
No fim do livro, um glossário explicará o significado dos termos que Duarte preferiu manter em sânscrito.
No início, haverá uma introdução do próprio tradutor com o resumo do "Mahabharata", a contextualização filosófica da epopéia e uma série de considerações sobre a prosódia da poesia hindu.
Historiadores acreditam que os portugueses introduziram o "Gita" no Ocidente durante o século 17. Entretanto, a versão que o tornou mais conhecido é a do inglês Charles Wilkins e data de 1785.
Grandes literatos já manifestaram respeito pelo livro. O poeta alemão Goethe, por exemplo, classificou-o como "a mais sublime canção da religião dinâmica".
Lampião
Rogerio Duarte começou a tradução do "Gita" em 1978. Quinze anos antes, militava no Partido Comunista e produzia cartazes para filmes do Cinema Novo (como "Deus e o Diabo na Terra do Sol", dirigido por Glauber Rocha).
Em 1967, integrou o grupo que concebeu as linhas teóricas do tropicalismo.
O movimento cultural procurava fundir o regionalismo e a tradição à modernidade para criar produtos capazes de se inscrever no panorama artístico mundial.
O poeta de Ubaíra, porém, não se limitou à gênese intelectual da revolução. Também pôs a mão na massa participando de performances com o artista plástico Hélio Oiticica ou compondo com Gilberto Gil e Caetano Veloso.
Preso e torturado em 1968 por razões políticas, Duarte se afastou do marxismo para cultivar a religiosidade.
Uma década depois, virou hare-krishna, batizou-se como Raghunatha e saiu pelo país vendendo livros e incensos.
Aproveitou para aprender sânscrito e se debruçar sobre o "Gita", que já possuía edições brasileiras. "Queria traduzi-lo à maneira dos cordelistas e divulgá-lo pelas praças", conta.
Duarte percebeu que o sânscrito se adapta perfeitamente à métrica nordestina. Por isso, transformou boa parte do "Gita" em redondilhas maiores, os versos de sete sílabas que predominam no cordel. Abriu mão, contudo, das rimas.
O poeta ainda aponta outra similaridade entre as duas literaturas. O narrador do "Gita" -o vidente Sanjaya- não presenciou os fatos que relata.
"Os cordelistas fazem o mesmo. Divulgam as aventuras de personagens como Lampião sem nunca os ter conhecido."

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