São Paulo, sexta-feira, 21 de março de 1997
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O futuro se faz com a fala ministerial: 'Doravante...'

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Outro dia, num desses telejornais, um ministro de Estado anunciou uma alteração numa lei (ou num regulamento) qualquer.
Com voz séria e ao mesmo tempo triunfal, olhando a câmera que levaria sua ministerial figura a milhares de casas e cidadãos, ele começou a frase como se tivesse descoberto a quadratura do círculo e comunicasse a façanha ao povo deslumbrado: "Doravante..." E seguiu-se o que, doravante, nos espera. Evidente que, doravante, a pátria está salva.
É isso aí, senhoras e senhores. O Brasil se supera dia a dia, não somos mais o país do futuro que aquele escritor austríaco descobriu. Somos o país do doravante, que é uma espécie de futuro que está sempre começando e no qual se localizam nossos compromissos e esperanças.
O doravante nos basta, dá a sensação de que estamos voltados para a frente, que o doravante é o paraíso nacional que perseguimos há quase 500 anos.
Doravante, quem está devendo fica devendo mais e quem não está devendo fica devendo alguma coisa. Doravante, fica proibido roubar o erário público e, quem o tentar, doravante será punido com uma lei que começará em seu artigo primeiro: "Doravante..."
Doravante, a taxa de câmbio não será calculada nem o balanço de pagamentos será aferido desse modo, mas de outro.
As vantagens do doravante são múltiplas porque não estabelecem uma meta concreta. Abrem apenas o leque para um futuro impreciso que começa no dia em que o doravante é publicado no "Diário Oficial".
Com um detalhe: sem data nem ocasião para apresentar resultados (bons ou maus, não importam), pois a lei ou regulamento remetem diretamente ao futuro que afinal chegou por obra daquele achado vocabular: doravante.
Doravante tudo estará resolvido e, se nada for resolvido, não é o caso para um suicídio coletivo, uma vez que aparecerá na TV um ministro (o mesmo ou um outro) que dirá, olhando firmemente a câmera: "Doravante..."
Como podemos constatar com cívica facúndia, chegamos finalmente a algum ponto. O que desgraçava o Brasil e exasperava o povo é que nunca chegávamos a um lugar preciso no tempo e no espaço, nunca nos considerávamos prontos, definidos. Sonhávamos com um paraíso, mas ficaríamos satisfeitos se chegássemos a um purgatório.
A coisa era meio confusa, suspeitávamos que um dia alcançaríamos o futuro. Lembro o ministro-intelectual que citou Kant e o hino nacional, profetizando: "Quando formos uma nação de 100 milhões de brasileiros, o mundo nos respeitará, verá o gigante que se levantou do berço esplêndido!"
Éramos então 70 milhões em ação. Hoje somos o dobro disso, acho que 150 milhões e picos. E precisou que um presidente francês aqui viesse para nos comunicar que somos um país sério.
Felizmente, tivemos a leal e enxuta fala ministerial que colocou as coisas e nos colocou definitivamente nos trilhos: "Doravante..." O futuro se faz. Por isso mesmo, construiremos um futuro nacional que doravante começará com a venda da Vale, a nova lei da previdência, a emenda da reeleição e a emocionante punição da turma dos precatórios.
Doravante, na declaração do Imposto de Renda, onde no campo 23, que era destinado aos abatimentos da cédula E, serão lançados os debêntures da cédula G deduzidos nos percentuais da alínea C que doravante passará a ser a alínea D.
Doravante, o tempo de aposentadoria será de 60 anos, segundo o presidente, mas será de 65, segundo o ministro, mas evidentemente será de 70, pois a previdência não suportará a formidável carga de brasileiros que se aposentarão precocemente, como o próprio ministro que se aposentou antes dos 50 anos.
Doravante, os outros povos do planeta deverão sair de baixo, porque lá vamos nós. Doravante o Brasil é a pátria com que nossos ancestrais sonharam e que construiremos mudando o parágrafo terceiro da Lei de Incentivos Fiscais e revogando o parágrafo quinto da Lei de Remessa de Lucros.
Doravante -a vontade que tenho é de mudar de canal toda vez que um ministro na TV promete que doravante seremos isso e teremos aquilo.
Mudança de eixo
Em entrevista a Fernando de Barros e Silva na semana passada, quando fui questionado sobre a principal diferença entre os anos 60 e 90, expressei-me mal ao dizer que nos anos 60 o eixo era político e que nos anos 90 o eixo é econômico. Quis dizer "ideológico" e não "político".
O erro foi meu e não do Fernando. Por isso mesmo, dava o exemplo de FHC, que se tornou emblemático dessa mudança de eixo. Daí que os presidentes da República quando viajam pelo mundo se tornam caixeiros viajantes, mascates com o seu baú de bugigangas que vão abrindo de porta em porta.
A troca não é necessariamente pior. O pior é que no momento em que uma ideologia exigindo justiça social chega ao poder, os mesmos ideólogos mudam de lado e adotam a prioridade da economia sobre todos os demais valores da sociedade.
Saíram de campo os tecnocratas dos militares. Entraram os pragmáticos neoliberais. Mudaram os homens, mas o esquema continuou o mesmo: doravante, quem pode pode, quem não pode se sacode, como acontece desde a criação do mundo.

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