São Paulo, domingo, 23 de março de 1997
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Famílias "United Colors"

ADRIANA VIEIRA; JONI ANDERSON

Casos raros na loteria genética, filhos de casais misturados enfrentam o preconceito
"Um dia, o Arthur Jr. chegou em casa nervoso, chorando, depois que um coleguinha disse que eu era "negona". Levei ele até o espelho e disse: "Olhe sua mãe: eu sou negra, alta... portanto, uma negrona."
(Maria Dagueneide dos Santos)
POR ADRIANA VIEIRA e
JONI ANDERSON
Na certidão de nascimento, a cor de Igor Araújo, 2, não está especificada. Ele é branco, tem cabelos loiros e olhos cor de mel. Na certidão da secretária Guaraciaba Santos Faria Araújo, 29, está escrito "parda", embora ela se considere negra: sua pele é bem escura, os lábios são grandes e os cabelos, crespos.
Guaraciaba é mãe de Igor. Um caso raro, explicado pela loteria genética. Os genes recessivos do pai, o vendedor Sérgio Ubirajara Faria Araújo, 34, branco e de olhos esverdeados, acabaram determinando as características do filho.
Apesar da explicação científica (veja quadro nas págs. 14 e 15), o caso surpreende quem se depara com mãe e filho. "As pessoas olham bem para ele, depois olham para mim e falam: a boca é parecida. Mas é teu filho mesmo?", conta Guaraciaba.
O constrangimento é comum para as famílias inter-raciais. Mães negras são confundidas com babás; filhos são vistos como meninos de rua e paternidades são colocadas em xeque.
O assunto conquistou até Hollywood. A história da filha negra e bem-sucedida que, aos 27 anos, conhece a mãe branca e pobre fez do filme "Segredos e Mentiras", do diretor inglês Mike Leigh, um dos mais indicados ao Oscar deste ano (concorre a melhor filme, diretor, atriz, roteiro original e atriz coadjuvante).
Longe das telas e quase sempre sem segredos, nem mentiras, dramas de pais e filhos de cores diferentes acontecem mesmo no Brasil, país conhecido pela sua grande miscigenação.
Nascida numa família bastante misturada (brancos, negros, mulatos e orientais), Guaraciaba acredita que o choque entre culturas distintas pode ser atenuado, desde que elas sejam equilibradas na formação da criança.
"Tenho que assumir o que eu sou, o que a minha família é. Se você mente para uma criança, pode marcá-la pelo resto da vida", afirma a mãe.
Café-com-leite
A educação de Igor é um fantasma para o casal. "Acho que ele ainda não percebe que alguém discrimina a mãe dele por preconceito. Já estou preparada para fazer a cabeça dele, porque os coleguinhas vão falar: 'A tua mãe é negra, você é branco'. Tem criança que aceita bem brincadeira, mas outras não", diz.
A mistura étnica dentro de casa parece ser bem entendida pelo filho, que tem tio negro, avó mulata e tia oriental. Por estar numa situação especial, a mãe coruja acha que a criança tem uma maturidade além da média. "Ele é esperto, percebe nossas diferenças e muitas vezes nos aproxima (ela e o marido) mais."
A ex-modelo Fátima Aparecida Nascimento dos Santos Radunz -conhecida como Preta- vive a mesma experiência de Guaraciaba.
A primeira visita do casal Radunz e seu filho ao pediatra fez com que a secretária pensasse que Preta era uma acompanhante qualquer. A moça perguntou várias vezes "onde está a mãe?" e não se convencia. A situação só foi "esclarecida", quando acabou a paciência do marido, o modelo Arthur, branco, loiro, olhos azuis. "Esta é a mãe. Ela está bem aqui", disse ele, rispidamente.
"Na maioria das vezes, quem vê o Arthur Jr. sozinho não imagina que a mãe dele é negra. Quando eu me apresento, há um choque", diz Preta.
Mulato bem claro, Arthur Jr., 5, não tem os olhos azuis do pai, nem a cor da pele da mãe. É o resultado da miscigenação na família Radunz, descendentes alemães radicados em Cachoeira do Sul, no Rio Grande do Sul.
Segundo Preta, o avô de Arthur morreu inconformado com o nascimento do neto, que representava "uma sujeira no sangue da família". "Já o meu marido, que morreu há um ano e meio, queria muito que o filho saísse preto. Ele ficava enlouquecido com crianças negras. O efeito saiu estufa... Meu sangue não era puro...", brinca a mãe.
Os constrangimentos, que Preta prefere levar na esportiva, ocorrem até hoje. "Recentemente ele saiu correndo da loja onde estávamos. Fiquei nervosa e o peguei com firmeza. Dois guardas pararam na minha frente e me olharam como se eu fosse a babá batendo na criança."
Por razões óbvias, é impossível disfarçar as diferenças. Preta redobra os cuidados agora que Arthur Jr. está em idade escolar. Ele já chegou em casa nervoso, chorando, depois que um coleguinha chamou sua mãe de "negona". Nesse dia, Preta levou-o até a frente do espelho. "Olhe sua mãe: eu sou negra, alta... portanto, uma negrona."
Quando ele pergunta qual é a sua própria cor, Preta mistura café e leite na xícara e mostra para o filho. "O racismo é como uma religião, você ensina desde cedo. Uma criança não sabe a diferença entre negros e brancos, ela aprende com um adulto e não esquece."
Japonês loiro
Quando ocorre mistura, até os loiros sofrem preconceito. Cabelos bem claros, olhos azuis puxados, Dani, 2, é resultado de uma mistura incomum: a mãe, Márcia Vaitsman Chiga, 23, é nisei, e o pai, Nabor Kisser, 23, austríaco.
"Esperávamos um filho com outra aparência. Antes dele nascer, o próprio médico disse que seria menina e morena", conta a mãe.
Segundo ela, o filho, com características tão diferentes, não representou problemas para a família. "Meus pais já passaram por isso. Minha mãe é descendente de judeu, e meu pai, japonês."
Mas, na rua, o casal afirma que, além de estranhamento, encontra discriminação. "As pessoas falam: 'Como ele é lindo! Sorte que nasceu com o cabelo loiro'. Até parece que se o Dani fosse moreno seria feio", diz Márcia.
"É impressionante como os brasileiros valorizam muito os padrões de beleza europeu e norte-americano. E o mais engraçado é que a gente vê poucos loiros nas ruas", comenta o pai, que está há cinco anos no Brasil.
O capoeirista Edison Nascimento, 45, ainda lembra das piadas que ouvia por causa do seu tipo: "Sua mãe pulou a cerca?" "Você é adotivo?".
Filho de pais bastante escuros, Sarará, como é conhecido, nasceu mulato bem claro, com olhos verdes e cabelos encrespados, quase loiros. Destoa das duas irmãs, que são mulatas escuras.
Segundo ele, a explicação de tal diferença está no passado. "Diz a lenda da família que uma das minhas bisavós era uma sinhá que se envolveu com um escravo e teve um filho. Por causa da pressão, ela teria se suicidado", conta.
Mas o visual "exótico" também lhe trouxe compensações. "Esses olhos verdes me ajudaram muito a conquistar as mulheres. Hoje, eu também recebo muitos convites para jogar capoeira na Europa por causa do meu tipo", diz.
Casado há 20 anos com uma mulata, Sarará é pai de um adolescente de 17 anos. "O Júnior é bem mais escuro que eu. Mas ninguém duvida que é meu filho, porque ele tem as feições muito parecidas com as minhas."
Neto mulato
Assim como mães negras com filhos brancos, a designer de jóias Camila Nador, 38, já foi várias vezes questionada se o filho mulato era legítimo. Branca, ela viveu com um nigeriano negro e teve Miguel, 1 ano e 9 meses.
"A maioria das crianças mulatas é pobre e adotada. É muito raro encontrar uma criança negra, filha de branco e de classe média", justifica Camila.
Ela se orgulha de ter quebrado um tabu da família. "Quando eu só namorava, não havia problema. Mas, ao dizer que estava grávida, meus pais se assustaram: 'Nossa, um neto mulato', comentaram. Hoje, Miguel é considerado o neto mais lindo do mundo", conta.
Miguel nasceu branquinho. "Tive uma pontinha de alegria. Mas acho que não foi racismo, é normal toda mãe querer ver características dela no filho."
Para Miguel superar o racismo, Camila diz que a melhor maneira é ensiná-lo a ter orgulho do que é. "Quero mostrar que ele é lindo, igual a todos e espero que seja bravo em relação à sua cor, nunca abaixe a cabeça", diz a mãe.
Para a mulata Ivone Aparecida Machado, 39, o problema maior é quando a discriminação parte da família. Ela é casada com o descendente de italianos José Carlos Mazzola, 49.
"A família dele nunca aceitou. Existe aquele pensamento de que negro só casa com branco por causa do dinheiro", afirma Ivone, dona de um restaurante no centro de São Paulo junto com o marido.
O casal tem dois filhos, Guido e Luciana, 18, que puxaram o pai. A filha tem cabelos castanhos e olhos verdes. O menino também é branco. Além dos dois, Ivone teve aos 14 anos outra filha, Luciara, 22, mulata como a mãe.
"Luciana e Guido são bem aceitos pela família do meu marido, sempre frequentaram as casas dos tios. Já eu e Luciara nem somos convidadas para os aniversários", diz Ivone.
Segundo ela, apesar da diferença da cor da pele, Guido e Luciana são "bem negrinhos". "Ele adora capoeira, e Luciana é a maior sambista da família."
Apesar dos momentos embaraçosos na época da escola -"Como você pode ser irmã deles? Eles são tão brancos, você tão escura", diziam os colegas-, Luciara diz que a relação entre irmãos sempre foi normal. "Tínhamos as brigas que todos têm quando são pequenos."
Em outros casos, a discriminação nasce na própria família negra. A assistente comercial Mirani de Souza Santos Silva, 28, casada com um branco, tem duas filhas. Ela já ouviu dos parentes: "É melhor mesmo você casar com um branco, assim vai clareando a família".
Preconceito, portanto, de todo lado, num país cujo presidente se considera um exemplo de miscigenação. Para quem não se lembra, Fernando Henrique Cardoso disse: "Eu sou bem mulatinho. Tenho um pé na cozinha." E garantiu: "Não tenho preconceito".

Agradecimentos Dilma Pereira (cabelo e maquiagem)

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