São Paulo, terça-feira, 25 de março de 1997
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Globalitarismo e crise da política

TARSO GENRO

Ignacio Ramonet publicou no "Le Monde Diplomatique" de 15/1 importante reflexão teórica sobre a situação atual dos Estados Nacionais, perante o processo já sedimentado de "globalização" econômica. Compara o comportamento dos Estados -induzindo uma uniformização político-ideológica da sociedade, que precisa "apoiar" esse processo- com aquele promovido pelos Estados totalitários, que se confundiam com o partido único.
Nos regimes que chama de "globalitários", o Estado passa a ser puro instrumento de manipulação e de adaptação das sociedades e das economias à nova ordem mundial. E isso requer continuidade, uniformidade social e desmoralização da dissidência. Nos velhos regimes totalitários, o Estado dirigia para si mesmo, ou seja, para que a fusão partido-Estado fundasse a sua potência na sociedade controlada diretamente pelo aparato policial.
O globalitarismo, sendo reflexo do mercado mundial, gera, porém, um duplo e trágico efeito: de uma parte, as políticas de Estado só respondem à lógica de quem controla e manipula o mercado mundial (cerca de 200 multinacionais que respondem por um quarto desse mercado); de outra parte, essas políticas promovem uma profunda "descoesão" social, que estrutura uma outra sociedade -fora do controle do Estado-, resultado da ruptura de todos os nexos da sociedade formal (incluída) com a informal (excluída).
Esse processo sugere a emergência de outro tipo de "estadista". Como a adaptação à ordem mundial é "inevitável", os chefes de governo se tornam agentes diretos do mercado, como verdadeiros caixeiros-viajantes das suas empresas "competitivas". Ora suplicam por investimentos e ofertam estabilidade monetária, ora anunciam mão-de-obra barata, ou seja, ofertam a miséria material do seu mercado de trabalho.
Nada disso surpreende, porque vivemos um período histórico em que a política perdeu a sua força constitutiva, e a esquerda ainda não se rearticulou, mundialmente, para disputar uma nova ordem econômica e um mercado regulado. Essa nova ordem, aliás, foi proposta pelo presidente Mitterrand, ele mesmo vítima constrangida dessa espontaneidade destrutiva.
O que surpreende é a raridade das vozes na imprensa -que é livre- para disputar e denunciar esse estado de fato. Nele se "agravam" -como diz Ramonet- "por todas as partes as desigualdades econômicas, que se acentuam à medida que aumenta a supremacia dos mercados".
Acompanha, portanto, este período a dissolução de uma ética da solidariedade e de uma moralidade cidadã, que caracterizaram os valores da modernidade. Eles foram substituídos pelo "pragmatismo irresponsável", que torna a política um apêndice do mercado financeiro, em nome da inevitabilidade da sua ditadura, anulando a possibilidade da emergência de nações não-dependentes.
Os ataques especulativos que o capital "volátil" tem condições de realizar contra as moedas fracas são a chave financeira dessa dominação. No Brasil, criou-se a ilusão da moeda forte, que só sobrevive estável pela submissão ao pagamento dos juros escorchantes, que atraem os investimentos especulativos externos, com prazos cada vez mais curtos.
O resultado é que os países ricos pautam uma submissão política cada vez maior e um mercado interno cada vez mais "aberto", com um Estado que se faz cada vez mais fraco para cumprir suas finalidades sociais.
As políticas financeiras internas, como resultado direto do processo econômico global, e o direito como mero registro das necessidades do capital aparentemente sem dono complementam esta nova etapa de desenvolvimento capitalista, desigual pela própria essência.
Seus efeitos sociais são devastadores, pois a renda nunca foi tão concentrada, e a etapa seguinte, da precarização do trabalho e da sua eliminação como fonte de identidade, mina ainda mais as possibilidades de resistência.
Mas nada disso, na verdade, é inevitável. O sacrifício que está sendo imposto a milhões de pessoas reabre a questão social como uma questão não mais somente do Estado. Ela cria novas "autonomias" na base da sociedade, que surgem hoje como método ordinário de sobrevivência.
Um novo tipo de consciência social, estimulada pela solidariedade, que se traduza em atos concretos vivenciados pelas pessoas no seu cotidiano, pode gerar uma nova política. Ela teria outra densidade ética, capaz de transformar a cultura política manipulada da ordem global numa cultura de resistência e mudança. A história já conheceu períodos semelhantes. E ela não terminou.

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