São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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Censores cortavam até reportagens sobre xadrez

CÉLIA DE GOUVÊA FRANCO
DA REPORTAGEM LOCAL

O jornal "Opinião" publicava rotineiramente prosaicos artigos sobre xadrez, escritos por um especialista do jornal inglês "Guardian". Um desses artigos acabou engrossando as estatísticas sobre a ação da censura no jornal.
O censor decidiu cortar uma matéria sobre uma determinada partida de xadrez, que terminava com a seguinte frase: "As pretas ganharam". Preocupados com a questão racial, os militares tinham dado ordens para que fosse censurada qualquer matéria que pudesse, mesmo que remotamente, ser interpretada como uma menção ao assunto.
Esse caso, lembrado pelo jornalista Antonio Carlos Ferreira, 49, secretário de redação do "Opinião" durante cerca de três anos, ilustra o tratamento reservado ao jornal pela censura, muito mais severo do que o destinado a outros jornais e revistas.
Segundo um levantamento publicado pelo jornal no seu penúltimo número, datada de 1º de abril de 1977, nos quatro e meio anos de sua existência foram preparadas para ser publicadas 10.548 páginas (em formato tablóide), mas só chegaram às mãos dos leitores a metade disso, 5.796 páginas mais precisamente. As matérias restantes foram censuradas.
Esquema especial
Inicialmente, a censura ao "Opinião" funcionava segundo o mesmo sistema imposto a outras publicações, com um censor trabalhando na redação do jornal. No caso do "Opinião" era uma censora, "a D. Marina", lembra Raimundo Pereira, editor do jornal.
Ainda no seu primeiro ano de existência, porém, o governo adotou um sistema especial para o "Opinião" e passou a exigir que todo o material a ser publicado fosse mandado para o escritório da Polícia Federal, no Rio de Janeiro, de onde era encaminhado para a sede do órgão, em Brasília.
Essa exigência acarretou profundas mudanças no esquema de trabalho do jornal, lembra o jornalista Dirceu Brisola, 52, editor de assuntos políticos nos primeiros 18 meses do "Opinião".
As matérias precisavam ser feitas com muita antecedência, o jornal começou a fazer matérias em número muito maior do que o necessário para cada edição, os jornalistas passaram a adotar "truques" para evitar os cortes da censura.
Numa época em que os censores cortavam sistematicamente todos os leads (a abertura da matéria), por exemplo, os jornalistas passaram a escrever matérias com dois leads, o primeiro, falso, para ser cortado pela censura, e o segundo, o verdadeiro.
Quando não era possível substituir uma matéria censurada por outra, o espaço saía preto.
Ganhou, mas não levou
O jornal também impetrou um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal, alegando que a censura era inconstitucional, conta Fernando Gasparian, dono do "Opinião".
Ele ganhou a ação, mas, "logo em seguida, o presidente (Emílio) Médici baixou um decreto, com base no AI-5 (Ato Institucional número 5, que concedia poderes especiais ao presidente da República) que tornava 'legal' a censura", relembra Gasparian.
Mesmo assuntos tratados por outras publicações eram proibidos no "Opinião".
No final, dizem todos os entrevistados, foi o desgaste provocado pela disputa semanal contra a censura que acabou levando ao fechamento do jornal.
Em abril de 1977, foi publicado um editorial em que se anunciava que a partir da semana seguinte o jornal só sairia se não fosse censurado. E, de fato, na edição seguinte, o material a ser publicado não foi mandado para Brasília como acontecia rotineiramente.
Em vez disso, foi montada uma mini operação de guerra para evitar que a edição sem censura fosse apreendida: o "Opinião" foi impresso em uma editora de publicações japonesas, no bairro da Liberdade, em São Paulo, em vez de ser impresso numa gráfica no Rio.
Mesmo com essas precauções, grande parte da edição foi apreendida, foi aberto um processo contra Gasparian (que acabou sendo arquivado, já na época da distensão política) e o "Opinião" nunca mais circulou.
(CGF)

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