São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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Luxo

HANS-MAGNUS ENZENSBERGER
DE ONDE VEM PARA ONDE VAI

Duty Free Shop e shopping centers são o necrotério do luxo; lá se conservam os restos miseráveis do custoso defunto; o inquietante neles é que se multiplicam como num filme de horror

Curiosa inversão de uma lógica dos desejos: o luxo do futuro despede-se do supérfluo e aspira ao necessário, do qual se deve temer que fique à disposição tão-somente das minorias. O que realmente importa, nenhum Duty Free Shop tem para oferecer:
1. O tempo
Ele é o mais importante de todos os bens de luxo. Estranhamente, as elites funcionais são, justamente, as que menos dispõem com liberdade de seu próprio tempo de vida. Não se trata, em primeiro plano, de uma questão quantitativa, embora muitos membros dessa camada trabalhem até 80 horas por semana; antes, são suas múltiplas dependências que os escravizam. Espera-se deles que estejam sempre à mão e de prontidão, às ordens. De resto, eles estão presos a agendas que se estendem por anos, futuro adentro.
Mas, também, outros profissionais estão presos a regulamentos que lhes restringem a um mínimo a soberania do tempo. Os operários dependem do horário de funcionamento das máquinas; as donas-de-casa, do absurdo horário de fechamento das lojas; os pais, das disposições das escolas, e quase todos se sujeitam ao movimento pendular dos horários de pico no trânsito. Sob tais condições, vive com luxo quem sempre tem tempo de se ocupar com o que deseja e quem pode decidir por si próprio o que fazer com seu tempo, bem como o quanto, quando e onde fazê-lo.
2. A atenção
Também este é um bem escasso, por cuja distribuição luta encarniçadamente toda a mídia. Na rivalidade entre dinheiro e política, esporte e arte, técnica e publicidade, pouco resta da atenção. Só quem se furta a tais exigências e desliga o rumor dos canais pode decidir por si mesmo o que merece e o que não merece atenção. Sob a metralha das informações arbitrárias, diminuem nossas capacidades sensíveis e cognitivas; elas aumentam com a redução àquilo, e somente àquilo, que nós próprios queremos ver, ouvir, sentir e saber. Nisto também pode-se ver um momento do luxo.
3. O espaço
O que a agenda é para a economia do tempo, o congestionamento é para a do espaço. Num sentido extremado, ele é onipresente. Aluguéis em alta, falta de moradias, meios de transporte lotados, aperto nas calçadas, piscinas públicas, discotecas e zonas turísticas indicam uma concentração das relações de vida que confina com a privação da liberdade. Quem pode escapar a esse engaiolamento, vive com luxo. Disso também consta a disposição de cavar pela liberdade sob a montanha de mercadorias. Em regra, a habitação, já bastante pequena, é entulhada de móveis, utensílios, quinquilharias e penduricalhos. O que falta é aquela abundância de espaço que só a livre movimentação torna possível. Hoje, um recinto parece luxuoso quando está vazio.
4. O sossego
Também ele é uma necessidade fundamental sempre mais difícil de satisfazer. Quem quiser evadir a barulheira onipresente, terá de incorrer em gastos de vulto. As habitações são, via de regra, tanto mais caras quanto mais sossegadas forem; os restaurantes que não enchem de cantilena os ouvidos de seus clientes exigem altos preços para que eles abdiquem desse incômodo. O tráfego estrondeante, o ganido das sirenes, o matraquear dos helicópteros, o aparelho de som estentóreo do vizinho, as festas de rua que ribombam meses a fio -desfruta de luxo quem pode se subtrair a tudo isso.
5. O meio ambiente
Que se possa respirar o ar e beber a água, que ele não exale vapores e ela não cheire mal não é nenhuma obviedade, mas um privilégio de que partilham cada vez menos pessoas. Quem não os produz por si mesmo, tem de pagar caro por alimentos não envenenados. Evitar os riscos ao corpo e à vida no local de trabalho, no trânsito e na balbúrdia nociva das horas de lazer seria custoso à maioria. Nesse sentido, também as possibilidades de retiro tornam-se cada vez mais escassas.
6. A segurança
Ela é provavelmente o mais precário de todos os bens de luxo. Na medida em que o Estado não pode garanti-la, cresce a demanda privada e os preços disparam. Guarda-costas, serviços de vigilância, dispositivos de alarme -tudo que promete segurança integra hoje o estilo de vida dos privilegiados, e o ramo pode contar, no futuro, com altas taxas de crescimento. Quem se muda para o bairro dos ricos, logo pressente que o luxo do futuro não promete um puro desfrute. A exemplo do passado, ele não ensejará apenas liberdades, mas também coerções. Pois o privilegiado que se quiser pôr em segurança não exclui somente os outros; exclui a si mesmo.
*
Em resumo, estas conjecturas resultam numa vira-volta rica em ironia. Se elas têm algum cabimento, o futuro do luxo não reside mais, como antes, na multiplicação, mas na redução, não na confluência, mas na evasão. A abundância ingressa num novo estágio, na medida em que se nega. A resposta ao paradoxo da exclusividade massificada seria, então, um outro paradoxo: minimalismo e renúncia poderiam mostrar-se tão raros, dispendiosos e cobiçados como, outrora, o esbanjamento ostensivo.
Porém, com isso, o luxo perderia definitivamente o seu papel representativo. Sua privatização seria perfeita. Ele não precisaria mais de quaisquer observadores, pois os excluiria. Sua lógica consistiria, justamente, em fazer-se invisível. Com tal retraimento em face da realidade, o luxo permaneceria, no entanto, fiel à sua origem; pois, desde sempre, ele esteve em pé de guerra com o princípio da realidade. Talvez, aliás, ele nunca tenha sido senão uma tentativa de fuga da fadiga e da monotonia da vida.
Moderna e desconcertante é outra questão que se impõe a tais perspectivas. Não está nada claro sobre quem, na verdade, contará, no futuro, entre os beneficiários do luxo. Os parâmetros tradicionais, como posição social, renda e patrimônio absolutamente não serão mais decisivos. Muito do que aqui se acha em debate, um administrador, um esportista de ponta, um banqueiro ou um político do alto escalão simplesmente não se poderão permitir. Espaço suficiente e um certo grau de segurança podem ser comprados por tais pessoas. Mas eles não possuem nem tempo, nem sossego.
Inversamente, desempregados, idosos e refugiados, que constituirão num futuro próximo a maioria da população, podem, em princípio, dispôr à vontade de seu tempo, mas seria um escárnio deslavado ver nisso um privilégio. Amontoados em exíguos alojamentos, sem dinheiro e segurança, muitos não têm o que fazer com o seu tempo livre. É difícil dizer como serão distribuídos os bens escassos no futuro, mas uma coisa é certa: quem tiver apenas um deles, não terá nada. A exemplo do passado, não se poderá cogitar de justiça. Ao menos quanto a isso, o luxo permanecerá, também no futuro, o que sempre foi: um adversário ferrenho da igualdade.

Notas: Maximilien de Béthune, duque de Sully, publicou as suas alentadas memórias sob o título "Mémoires des Sages et Royales Economies d'Etat", entre os anos 1638 e 1662, em Amsterdã e Paris. As citações do livro 16º da obra são reproduzidas na tradução de W.G. Sebald, "Die Ringe des Saturn" (Os Anéis de Saturno), Frankfurt, 1995.
"Développement et Défense du Système de la Noblesse Commerçante" é o nome de um libelo do abade Coyer, publicado em 1757, em Paris. A citação de Montesquieu foi retirada do livro 17º do "De l'Esprit des Lois", de 1748.
O epigrama de Voltaire provém do "Le Mondain"; sobre Diderot, veja também o artigo "Luxo" da "Encyclopédie" e a sua discussão no "Salon de 1767", a serem consultadas em alemão no primeiro volume dos "Philosophischen Schriften" ("Escritos Filosóficos"), Berlim, 1961.
As observações de Condorcet estão no Duhamel; várias outras fontes se acham no livro "Luxus und Kapitalismus" (Luxo e Capitalismo), de Werner Sombart (Berlim, 1913, 1922, 1983).
O artigo "Luxo" pode ser consultado no "Conversations-Lexicon oder Hand-Worterbuch für die gebildeten Stande" (Enciclopédia ou Dicionário para Manuseio das Classes Cultivadas), na primeira Brockhaus, volume 5º (Leipzig e Altenburg, 1815).
As declarações mais importantes de Georges Bataille a respeito do tema encontram-se em "La Notion de Dépense" (1933) e "La Part Maudite" (1949), e, em alemão, na tradução de Traugott Konig, no volume "Die Aufhebung der Okonomie" (A Superação da Economia), Munique, 1985.
As festas barrocas são tratadas por Richard Alewyn em seu livro "Das grosse Welttheater - die Epoche der hõfischen Feste" (O Grande Teatro do Mundo - a Época das Festas Palacianas", Munique, 1959, 1985.
Detalhes sobre Neuschwanstein são relatados por Rainer Schauer num artigo sobre as "Renditen aus koniglichen Traumen" (Rendas com os Sonhos Reais) ("Frankfurter Allgemeine Zeitung", 1º de junho de 1995).

O texto de Hans-Magnus Enzensberger reproduzido nesta edição é parte do seu novo livro "Zickzack - Ausãtze". Copyright Suhrkamp Verlag Frankfurt am Main 1997.
Tradução de José Marcos Macedo.

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