São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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Luxo

HANS-MAGNUS ENZENSBERGER
DE ONDE VEM PARA ONDE VAI

Continuação da pág. 5-5

Aos teólogos da pura economia de mercado, o projeto teria de ser igualmente uma pedra no sapato, como o foi, outrora, Neuschwanstein, o castelo fantástico do rei Ludwig 2º, da Baviera, ao seu tribunal de contas. Ele foi tido pelos funcionários como fruto da "doentia ânsia dissipadora de um paranóico". Aliás, hoje, lá se arrecada, ano a ano, 6 milhões de marcos em bilheteria, a mesma quantia gasta, em seu tempo, na construção de todo o edifício; a renda indireta desta sandice atingiu, nesse meio tempo, sem dúvida, os bilhões.
Mas o que é notável, nesse exemplo, não são os números. É o amor que se manifesta, ontem como hoje, ao paciente real, que durante toda a vida execrou a popularidade; um indício do fato de que o luxo, precisamente quando excede todas as proporções normais, não tropeça na indignação espontânea. O mesmo ocorre hoje. Todos os anos, no Natal, ruas inteiras são iluminadas. A cada dezembro, a Prefeitura de Paris trata de dependurar meio milhão de lamparinas. Isso não parece incomodar ninguém, nem mesmo os porta-vozes dos pobres. No dia em que, com grande pompa, o Grand Louvre foi inaugurado, meia dúzia de desabrigados morreram de frio na capital francesa. E, enquanto Mitterrand punha em marcha seu programa de obras faraônico, na periferia a guerra civil molecular se acirrava. Na mesma medida, desempregados e contribuintes enfrentam com admirável tolerância os elefantes brancos de nossa civilização.
Em geral, não há como evitar a afirmação de que raras vezes foram os condenados desta Terra, mas antes os seus autonomeados advogados, que vergastaram o esbanjamento público como obscenidade. Foram intelectuais radicais do calibre de um Robespierre, de um Lênin, de um Mao Tse-tung ou Pol Pot, isto é, advogados, filhos de latifundiários e sociólogos, que viram na ascese o ápice da virtude e se dispuseram a firmá-la, se necessário, com todos os meios do terror. Entre os pobres, despossuídos e humilhados, pode-se buscar longamente por pregadores da sobriedade.
Tudo isso ergue a suspeita de que o repúdio a todas as formas de luxo, até o mais modesto, deveria ser imputado, antes, ao escrúpulo e ao ódio próprio de seus críticos do que ao ressentimento daqueles que nele não tomam parte.
Estaria, então, tudo nos eixos, invalidado todo escrúpulo, reabilitado o luxo, brilhante a sua perspectiva futura, alcançado o "objetivo supremo do homem, o bem viver, fundado no bem-estar duradouro", como queria nosso informante da era guilhermina? Apenas um idiota poderia chegar a essa idéia.
Pois, ao lado do luxo coletivo, há muito se impôs um luxo democrático, privado, cotidiano, livre de todos os rituais, por assim dizer, parcelado a retalho, para não dizer mesquinho. O "bem-estar das classes inferiores, ampliado de forma inegável pelo progresso da indústria" tornou-o possível. Longe de nós o "sentimento maligno e misantropo" de invejar tais frutos! Deveríamos dispensar, também, a maledicência petulante com que se contempla, de bom grado, a figura do novo-rico. Todos que participam deste jogo começaram, afinal, como "nouveaux riches".
*
Nos anos do boom, o luxo privado, notado a custo pelos seus antigos inimigos, tomou um rumo inesperado e fatal. Ele morreu de tanto vencer. Na sua forma tradicional, em todo caso, ele foi abatido pela entropia, aquela regularidade que leva ao equilíbrio dos extremos, à uniformidade e à indiferença. Em todas as sociedades anteriores, o desperdício e a abundância eram tidos como raras exceções. O luxo devia seu esplendor e seu prestígio justamente ao fato de infringir todas as normas do cotidiano.
A produção em massa reservou-lhe, ao mesmo tempo, seu maior triunfo e declínio. Uma indústria gigantesca, que, mesmo na recessão, atinge fantásticos índices de crescimento, vive do resultado de sua fissão nuclear. Emblemática dessa evolução é a tendência pelos artigos de marca. Os nomes dos produtores tornaram-se um código universal. A etiqueta toma o lugar do objeto. Chega-se ao ponto de a clientela pôr seus corpos à disposição dos fornecedores como área de anúncio.
"Luxo não é o contrário de pobreza, mas de vulgaridade." Com tais palavras, Coco Chanel proferiu o veredito sobre a indústria de que ela era pioneira. Duty Free Shop e shopping centers são o necrotério do luxo. Lá se conservam os restos miseráveis do custoso defunto. O inquietante neles é que se multiplicam como num filme de horror. A inundação pelo idêntico apresenta-se com a afirmação de que representa o exclusivo, e o capricho dá um passo à frente com a tola pretensão de que se trata de um "must". O tão citado lucro de distinção expõe-se definitivamente ao ridículo quando, na ciranda das listas de compra e venda, manifesta-se o mesmo e eterno deserto.
O resultado, entretanto, também lança uma luz sobre o glorioso passado. Em retrospectiva, revela-se que o luxo sempre foi uma particularidade esteticamente dúbia. Todo tipo de ostentação pomposa tende ao excesso: ouro demais, brilho demais, enfeite demais, aparato demais. Somente pó e uso, pátina e desgaste amenizam a proximidade ao kitsch de tantas peças herdadas e tornam suportáveis a falta de gosto do bom gosto. Nas salas de horror das lojas de lembranças e de móveis de época, ela vai de encontro ao observador com o ímpeto de um murro.
Não admira que o luxo privado tenha-se perdido também para o observador invejoso. Quando nada mais há para ver, o voyeur dá as costas, num encolher de ombros. Tampouco é obra do acaso serem sobretudo rufiões, gângsteres e reis da droga que depositam mais valor em enfeitar-se com porcaria exclusiva. Em lugar algum a luta pela etiqueta, pelo nome de marca em roupas e utensílios, é travada de forma mais cruenta do que no gueto.
*
Assim, resta saber se o luxo privado ainda tem algum futuro. Espero e temo que sim. Se é verdade que o afã pela diferença faz parte do mecanismo da evolução, e que o prazer no desperdício radica na estrutura do instinto, então o luxo jamais poderá desaparecer, e a questão é, somente, qual feição ele assumirá na fuga de sua própria sombra.
Tudo que se pode dizer não passa de suposições. Suponho, portanto, que serão prioridades totalmente diversas sobre as quais versará o futuro combate pela distribuição. Escassos, raros, caros e desejáveis, sob o signo do consumo pululante, não são carros velozes e relógios de ouro, caixas de champanhe e perfumes, coisas que se adquirem a cada esquina, mas pressupostos vitais elementares, como sossego, água potável e espaço suficiente.

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