São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
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Luxo

HANS-MAGNUS ENZENSBERGER
DE ONDE VEM PARA ONDE VAI

Eis um puritano mal-entendido: que a ostentação de fausto e luxo tenha servido apenas ao deleite dos poderosos; eles eram antes obrigados a oferecer a qualquer preço um espetáculo exorbitante ao mundo

O melhor campo para se estudar essa inclinação ao excesso são as festas palacianas do período do barroco. Para estas orgias do desperdício, toda ocasião era boa o bastante aos príncipes: um batizado, um aniversário natalício, onomástico ou de morte, um acordo de paz ou uma conquista. Mesmo o casamento tinha de ser consumado às claras, ao menos no sentido simbólico: as bodas imperiais de Leopoldo 1º foram festejadas ao longo de um ano inteiro em Viena.
Para estes espetáculos eram empregados os mais célebres artistas do país e do estrangeiro. "Casas foram erguidas, montanhas deslocadas, florestas plantadas e lagos escavados. Milhares de operários ocuparam-se durante centenas de milhares de horas -e tudo isso para ser desperdiçado talvez numa única noite. Quando se mostrou ao idoso e enfastiado Carlos 2º, o último Habsburgo no trono espanhol, a nova fonte de Diana no jardim de La Granja, ele observou sombrio: 'Custou-me 3 milhões e divertiu-me 3 minutos'."
Eis um puritano mal-entendido: que a ostentação de fausto e luxo tenha servido apenas ao deleite dos poderosos. Eles eram antes obrigados, forçados até, a oferecer a qualquer preço, mesmo o da própria ruína, um espetáculo exorbitante ao mundo. Para os custos eles tinham de, como a pequena nobreza despossuída ("Standesherren"), contrair créditos que lhes oneravam, a eles e a seus súditos, a própria subsistência. E, no tocante ao deleite, cada passo dos integrantes dessas festas era prescrito com máximo rigor pela etiqueta. Há de se imaginar o conjunto como um esforço terrível e inevitável, que deixava todos os participantes esgotados.
E qual papel desempenhava o povo ou, no linguajar moderno, o público nestes rituais de desperdício? Ele não tinha somente de pagar o pato, tinha também o direito de ser espectador.
Os fogos de artifício da representação dependem, por assim dizer, da massa dos voyeurs. Mesmo na Etiópia, Hailê Selassiê pôde reclamar ao último dos mendigos a participação nas grandes festas do dominador. Os pobres tinham direito, como convidados marginais, a serem cevados com as sobras da mesa imperial.
Essa reciprocidade sobreviveu aos tempos do absolutismo. Até os dias de hoje, o público, por meio da imprensa de massas e televisão, toma parte nas festas das "proeminências". Quer se trate do baile na Ópera de Viena ou de uma premiação do Oscar, do casamento de um esportista de ponta ou dos restos das monarquias, sempre uma multidão curiosa espia pelo buraco da fechadura da mídia.
Também as formas mais sólidas do luxo público puderam manter-se até hoje. Não somente novas óperas, centros culturais e museus revelam o prazer pelo esbanjamento coletivo. Também a ciência erige para si monumentos colossais. Um deles é o Large Hadron Collider, que é construído atualmente nos arredores de Genebra, uma catedral "high-tech" subterrânea com tamanha destinação esotérica, que os contribuintes dos 16 países participantes mal conseguem compreender para que serve. Construção e emprego das instalações custarão, supostamente, 4 bilhões de marcos.
Que esse colosso renderá proveitos tangíveis, que amortizarão, em termos financeiros, a si próprio -quanto a isso, nem mesmo os pesquisadores e administradores botariam as suas mãos no fogo.

Continua à pág. 5-6

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