São Paulo, domingo, 30 de março de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Rússia, saúde e o Matias

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

De repente não é que o nosso caboclo Matias resolveu ir até a Rússia para conhecer de perto a agricultura daquele país? Sua intenção era ir até Moscou e, dali, direto para a região deserta de Kara Kum, onde os russos, desviando as águas de alimentação do lago Aral, transformaram um deserto em zona de produção agrícola, às custas da salinização de cerca de um terço daquilo que era uma das quatro maiores reservas de água doce do mundo.
Inexperiente que fora, chegou a Moscou pouco antes da primavera, e, brindado por uma temperatura extremamente baixa, o nosso pobre Matias, pouco agasalhado e pernoitando num dos hotéis perto do aeroporto, com deficiência de calefação, acordou no dia seguinte com 40 graus de febre e uma senhora pneumonia.
Sem saber o que fazer, procurou o médico do hotel. "Não temos médico permanente", informou-lhe o gerente, "e para chamá-lo até aqui levaria de dois a três dias. Todavia, no próximo quarteirão, o senhor irá encontrar um hospital que está acostumado a receber estrangeiros que se sentem mal ao chegar à nossa Moscou."
Lá se foi o nosso Matias e, sem ter outra alternativa, procurou uma enorme casa velha, ali chamada de hospital. Para ele, aquilo não passava de um hotel de quinta categoria.
Depois de muito indagar sem ser compreendido, pois poucos falavam inglês, e não sendo línguas o seu forte, o pobre Matias acabou num hospitaleco nas adjacências do seu hotel.
"Foram 12 dias para curar essa maldita pneumonia. Acho que o prazo de permanência não foi maior graças à minha excelente condição física de não-fumante e andarilho nato", dizia-me ele.
"O que me assustou, Antonio, foi a precariedade da saúde naquilo que chamam de hospital!"
"Imagine você que lá havia um só banheiro para 60 pacientes de ambos os sexos. Alimentação só era servida se viesse de fora, pois a suposta cozinha estava desativada, diziam eles, por falta de recursos. Troca de roupa de cama só era feita se você trouxesse consigo seus próprios lençóis e cobertores. A calefação funcionava só depois das 18 horas, até aproximadamente meia-noite!"
"Achei que estivesse com os meus dias contados e desesperava-me imaginar que, se por acaso eu viesse a falecer, certamente o meu corpo seria jogado na primeira valeta disponível. Tudo isso acabou gerando uma reação dentro do meu organismo, e, depois de dez dias, eu já estava desejando sair."
"Obtida a alta, o mais difícil era pagar a conta. Quem a receberia? A confusão era generalizada. Depois de 48 horas de espera, apareceu no meu quarto um senhor, possivelmente enfermeiro, dizendo-me que eu poderia pagar diretamente a ele. A conta foi modesta, não mais que US$ 400 para 12 dias de permanência. Não me atrevi a pedir recibo, já que percebi que aquela demora era proposital, a cobrança seria feita na hora certa, e a alta foi dada depois das 18h!"
"Em resumo, Antonio, diria que a saúde da Rússia, que há muito tempo estava na UTI, foi diretamente para o departamento de choque, que trata, geralmente, pacientes em coma. Horrível, sim! Que Deus nos afaste da desordem que ocorreu no sistema de saúde da Rússia."

Texto Anterior: O felix culpa
Próximo Texto: A Páscoa e a fraternidade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.