São Paulo, quarta-feira, 2 de abril de 1997
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Hip hop cerca as superquadras do poder

XICO SÁ
ENVIADO ESPECIAL AO DISTRITO FEDERAL

O rap-candango fez um cerco a Brasília com um massivo ataque à chamada "Ilha da Fantasia". Cerca de 150 grupos do gênero emergem de miseráveis cidades-satélites, como Ceilândia e Riacho Fundo, e marcham sobre o Plano Piloto, área onde ficam localizadas as superquadras do poder.
Hoje em dia, eles rejeitam o rótulo de gangsta (conceito de rap voltado para a pregação da violência direta), mas fazem as crônicas mais explícitas do país sobre o fosso social que separa os apocalípticos e excluídos dos integrados ao mercado de consumo.
Sangue no olho
"Em nenhum outro lugar isso é tão revoltante e na cara como no Distrito Federal", disse o rapper Gog, habitante de Riacho Fundo, uma das cidades-satélites mais violentas. "É sangue no olho."
No seu segundo disco, "Prepare-se" (gravação independente), Gog estampa no encarte fotos do ex-presidente Fernando Collor de Mello (acompanhado de uma Rosane cabisbaixa) e do atual Fernando Henrique Cardoso, de mãos postas, como numa oração.
A ira social vem encaixada em boa música, como no caso de "Razão para Viver", um rap com sampler de músicas de Tim Maia.
Boa melodia, variada do mundo sincopado do rap, também possui o grupo Cirurgia Moral, da Ceilândia Norte.
Com letras ainda mais explícitas, o grupo é uma espécie de cerimônia de adeus definitivo à existência da metáfora.
"Nem adianta a gente falar que não é gangsta. O rap de Brasília ficou mesmo com essa imagem", diz Rei, que compõe o Cirurgia Moral com Jamaica (ex-Câmbio Negro), agora acrescido de P/Ñ Uzzi Produções.
Segundo Rei, o grupo chega a dar um tratamento irônico ao estilo gangsta-pelo-gangsta. Reflete a violência, mas não incentiva a sua prática, a não ser na oralidade pesada contra o poder.
Uma das mais interessantes músicas do segundo disco da banda, lançado recentemente, é a faixa "Gospel Gangsta", que faz uma leitura pós-evangélica da "Bíblia", mostrando o mundo dos viciados.
O mote desse rap é simples: "O senhor é o meu pastor e nada me faltará". Nada, nesse caso, são as próprias drogas.
Os rappers do DF estão para o faroeste das cidades-satélites como os Racionais MC's existem para a extrema zona sul de São Paulo, onde Capão Redondo, o bairro, cospe na frieza da madrugada índices de assassinatos semelhantes ao de Medellín, na Colômbia de Pablo Escobar.
Pergunte ao pó
Segundo os rappers das cidades-satélites, somente o pó, a poeira dos assentamentos e o papelão das favelas nos arredores do poder explicariam tanta violência e falta de dignidade no DF.
"Quem chega a Brasília ou mora no Plano Piloto não faz idéia do que seja a vila Haiti", diz Stephon, vocalista, letrista e grafiteiro (nas horas vagas) do Fogo Cruzado.
A vila é um aglomerado, um tipo de pré-favela da cidade-satélite de Brazlândia, onde crianças e ratos "brincam" juntos.
Com as suas crônicas pedagógicas aliadas à diversão e boa musicalidade dos samplers, os grupos de rap-candango atraem multidões de jovens aos arredores de Brasília. Só encontram concorrência nos forrós da periferia, com quem convivem harmonicamente nas cidades-satélites.
Um detalhe curioso é que a cena rap do Distrito Federal está muito associada à capoeira, que, em algumas localidades, tem importância semelhante ao que representa a street-dance para o hip hop nos grandes centros urbanos.
Outra boa nova que vem dos arredores do Planalto é um grupo de rap só de mulheres, o Facção do Gueto, composto por três meninas da Ceilândia.

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