São Paulo, domingo, 6 de abril de 1997
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A dissimulação da crueldade policial; A alma real; Segundo ato; Método Rondon; O "Retrato do Brasil" para quem não gosta dele; Raymundo Faoro; Um novo ralo

ELIO GASPARI

A dissimulação da crueldade policial
Na manhã de segunda-feira, 22 garotos e duas meninas foram conduzidos por PMs pelas ruas centrais de Manaus. Caminhavam enfileirados. As meninas, soltas. Os três primeiros garotos, obrigados a segurar a fralda da camisa do que ia à frente. Os demais (ou pelos menos seis deles) amarrados pelos pulsos. Quem estava lá, viu. O jornalista Antonio Menezes, de "A Crítica", fotografou.
Cena capaz de chocar algumas pessoas, ela pode ser vista até com benevolência por outras. O prefeito de Chicago, Richard Daley, jamais deixou de se orgulhar da frase que disse durante a rebelião dos bairros negros, em 1968: "Matem os atiradores e aleijem os saqueadores".
As autoridades amazonenses (bem como as paulistas, como se viu na semana passada) padecem de um vício especial. Convivem com atos condenáveis, mas não têm a coragem de admitir o que sabem. Dedicam-se a construções teatrais, destinadas a iludir a boa-fé do público. Constroem uma teia de cumplicidades que acaba misturando o poder político com a violência policial. Ela secciona a relação de credibilidade que deve unir o poder público à sociedade. Afinal de contas, um sujeito pode achar certo amarrar meninos de rua, mas isso não lhe dá o direito de tratar os outros como neobobos.
Adiante, vão as explicações oferecidas pelo governo do Amazonas e pela sua Polícia Militar para a cena ocorrida em Manaus:
Fala o coronel Moacir da Fonseca Carioca, assessor de Comunicação Social da PM:
"As crianças a que você se refere são menores que ficam assaltando nos pontos de ônibus. Eles são conduzidos em fila, como nos colégios. São cheira-colas, esperando a hora para roubar."
"Amarrar? Estamos apurando."
"Não se usou corda. Eu não vi corda, sem brincadeira. Vi um botando a mão no ombro do outro. Garanto que não vi corda. Se no jornal tem corda, foi montagem."
"Com corda, ou sem corda, é um procedimento errado. Abrimos uma sindicância. Queremos saber por que motivo foi feito dessa maneira. O tenente não estava."
Fala Ronaldo Tiradentes, assessor de Comunicação Social do governador Amazonino Mendes:
"Uma pessoa conceituada, o médico Franco de Sá, que é muito benquisto na cidade, ligou para a polícia, queixando-se de um grupo de menores que jogavam pedras sobre sua casa."
"São garotos que vivem cheirando cola num terreno onde estão os restos de um prédio abandonado."
"Dois PMs, que aqui nós chamamos de Cosme e Damião, estavam passando pela rua, viram a cena e levaram os meninos."
"Nós não toleramos isso. O governador já pediu a prisão dos dois policiais. Eles já estão presos."
Retorna o coronel Carioca:
"Eles não estão presos, estão à disposição do encarregado da sindicância."
"Eu vi a fotografia. A corda é um pano trançado." (É.)
"Quando os PMs detiveram os meninos houve euforia na rua. Quando o povo viu que eram muitos, e os policiais eram só dois, pediu que os amarrassem. O povo aplaudiu. Os policiais foram induzidos."
"Esse comportamento é inaceitável."
Os policiais não eram dois. Também não eram uma dupla de Cosme e Damião passando por acaso. Eram um tenente e quatro soldados. Se o governador Amazonino Mendes não quiser fazer papel de tolo, pode dar um pulo no arquivo fotográfico de "A Crítica". Lá a cena está perfeitamente documentada. Saberá o que acontece no centro da cidade onde vive.

A alma real
Um rápido facho de luz no fundo da alma d'El Rey:
Em janeiro, quando o tucanato comemorava a vitória da aprovação da emenda da reeleição na Câmara dos Deputados e até mesmo os adversários reconheciam o valor da contribuição do ministro Sérgio Motta, FFHH se dizia preocupado com um novo tipo de problema.
Estava convencido de que seu amigo Sérgio, inebriado pelo sucesso, acabaria aprontando alguma.
Parecia um lance típico do temperamento do professor Cardoso, capaz de achar ao mesmo tempo que tudo vai bem e, mesmo assim, o desastre está por perto.
Foi uma premonição. Antes que se passassem 60 dias, Sérgio Motta ligou a metralhadora e acertou de uma só vez a CNBB, o PMDB e o governador Mário Covas. Isso, descontando-se as impropriedades que disse num telefonema ao presidente da Câmara, Michel Temer. O deputado, capaz de exasperar interlocutores com suas obsessivas boas maneiras, desligou o aparelho e deixou-o serjando sozinho. Em seguida, tocou para o Planalto e comunicou o fato a FFHH, sem futricar os motivos de seu gesto.

Segundo ato
O advogado Márcio Thomaz Bastos enviou uma petição ao presidente da CPI dos Títulos Públicos, senador Bernardo Cabral, pedindo-lhe que preserve todas as fitas de som e imagem das reuniões da comissão.
Quando os processos dos banqueiros metidos nas roubalheiras dos precatórios chegarem à Justiça, essas fitas, que dão tanta alegria e publicidade aos senadores, vão se transformar num pesadelo.
Mostrarão aos juízes, em cores e sem a frieza dos textos de depoimentos, que a CPI deturpou a natureza das acareações, transformando-as em novos interrogatórios e procurou forçar auto-incriminações.
Num caso, o próprio Bernardo Cabral, formado em direito, com passagem pelo Ministério da Justiça (no collorato), obrigou o banqueiro Ronaldo Ganon a depor como testemunha, quando ele queria falar como indiciado. A testemunha é obrigada a dizer a verdade, enquanto o indiciado tem o direito de não se incriminar.
Os trabalhos da CPI nada têm a ver com o ritual da Justiça, mas as fitas serão capazes de mostrar aos juízes que alguns réus foram submetidos a processos intimidatórios.

Método Rondon
Do grande acervo de lembranças do professor Darcy Ribeiro, resgatou-se uma que se pode tornar a primeira lição da Amazônia para administradores de empresas.
Darcy foi grande amigo do marechal Cândido Rondon, que nos anos 20 espetava postes e linhas de telégrafo pela floresta. Dele ouviu a seguinte teoria de estímulo ao esforço e à cooperação:
- Sempre que dez caboclos não eram suficientes para levantar um tronco de árvore e colocá-lo no buraco do poste, eu tirava um e dizia aos nove restantes que tentassem de novo. Nunca precisei tirar o segundo.

O "Retrato do Brasil" para quem não gosta dele
Uma feliz coincidência fez com que o ensaio histórico "Retrato do Brasil", de Paulo Prado, retornasse às livrarias exatamente numa época em que os brasileiros são levados pelos banqueiros dos títulos públicos e pelos PMs de Diadema a refletir sobre o tipo de sociedade em que vivem.
Paulo Prado era um figuraço. Foi dos poucos plutocratas paulistas de quem se pode dizer que tinha o comportamento de aristocrata. Frequentava a casa de Eça de Queirós, protegia o historiador Capistrano de Abreu. Mário de Andrade dedicou-lhe o romance "Macunaíma". Comprava bem tanto as roupas (em Paris) quanto os quadros (Picasso, a preço de ocasião). Financiou a Semana de Arte Moderna e militou na política defendendo o liberalismo de sua espécie. Nele o Estado era uma influência perniciosa para a economia, salvo quando se tratava de segurar o preço do café.
Seu livro saiu em 1927. Defende uma idéia simples: "Numa terra radiosa vive um povo triste". O brasileiro é triste porque vive na luxúria, dando-se ao concubinato, à mestiçagem, contaminado pelos "germes de desmoralização e depravação de costumes". (Seu único filho nasceu de uma relação "informal" com a filha do Visconde de Maracaju, mas deixa pra lá.)
A luxúria, esse povo acrescenta a cobiça, juntando à melancolia dos "abusos venéreos" a tristeza "dos que vivem na idéia fixa do enriquecimento". O culpado de quase tudo era o escravo (nem tanto a escravatura). Dizia assim: "Os escravos eram terríveis elementos de corrupção no seio das famílias. As negras e mulatas viviam na prática de todos os vícios."
Paulo Prado previa que essa confusão acabaria em guerra ou revolução.
Desde 1927, quando foi publicado, o "Retrato do Brasil" teve uma edição para cada geração e foi lido por cada uma delas à conveniência de sua época. Nos anos 20, os amigos das letras e artes elogiaram-lhe o magnífico estilo. Em 1945, a esquerda namorou-lhe a profecia revolucionária. Em 1972, passou meio despercebido na bebedeira do Brasil Grande.
Agora, o "Retrato do Brasil" surge como um documento inestimável para o reconhecimento de uma forma de pensamento racista, mistificadora e astuciosamente pessimista da elite nacional. É um manifesto de inconformismo de uma turma que se sente obrigada a viver numa sociedade que não faz por merecê-la.
Paulo Prado ecoou em FFHH depois do massacre de Curionópolis ("isso não é coisa de país civilizado"). Na semana passada, em Mário Covas: (a "violência é cultural, não estrutural"). Ou ainda em Sérgio Motta: "Este é um país de brincadeira".
O país não presta, seu povo é uma droga, mas eu vou para Miami sexta-feira. Esse é o universo da versão recente dessa forma de pensamento. Ler "Retrato do Brasil" é melhor e muito mais educativo que sofrer com a prosopopéia da moda. Por duas razões: primeiro porque Paulo Prado escrevia melhor. Segundo, porque ele não ia para Miami. Morava boa parte do ano em Paris.

Raymundo Faoro
(71 anos, advogado, autor do clássico "Os Donos do Poder")
*
- A CPI dos Títulos Públicos e a reação contra os PMs de Diadema são um sinal de progresso?
- Eu gostaria de achar isso, mas estamos apenas diante de uma coincidência. Nem a CPI reduzirá o grau de impunidade dos grandes banqueiros, nem a reação a Diadema irá além do espasmo emocional. Até agora a CPI só rosnou para tamboretes. Com relação a Diadema, descontada a grandiloquência das autoridades, a questão não foi discutida a sério. Ela está em Brasília. Lá, o Senado está garantindo aos PMs o foro privilegiado da Justiça Militar. É um privilégio de impunidade. O presidente francês Georges Clemenceau dizia que a Justiça Militar está para a Justiça assim como a música militar para a música. Estou certo que esses dez bandidos terão uma punição dura, mas servirão de álibi. O governo já pôs em circulação a tese do fato isolado praticado por maus elementos. É a velha reação. Corumbiara, Rondonópolis, Vigário Geral, Candelária e Diadema são todos fatos isolados? A reação solidária da classe média contra o banditismo praticado sobre os pobres é uma coisa muito transitória. Daqui a pouco passa.
- A que o senhor atribui isso?
- Sem elucubrar muito, eu acho que a elite brasileira consegue dois prodígios. Primeiro, não se renova. Segundo, passa para baixo uma noção excludente do que vem a ser o povo. O povo é o outro, aquele que está abaixo, com o qual você não tem nada a ver. Há uma homogeneidade na classe superior que não se repete para baixo. Mesmo assim, ela produziu uma ótica do de cima. Quem vive em condomínios policiados não se preocupa com a segurança dos edifícios, quem mora em apartamento não se preocupa com a segurança do favelado e, se você for ver bem, o favelado que está em casa de alvenaria aceita a destruição do barraco de madeira. É fácil achar que os crimes mostrados pelo "Jornal Nacional" são monstruosos, mas é mais difícil pensar na idéia de que o favelado tem os mesmos direitos que você.
-O senhor acha que essa noção não existe?
- Se existisse, não haveria casos como o de Rondonópolis nem o de Diadema. No caso do Pará, que até hoje está impune, ficou a idéia de que a polícia errou, mas estava certa. O pessoal das favelas e das beiras de estrada está chegando e está assustando. A maneira como o poder público lida com eles reflete uma elite assustada, que ainda não sabe como se comportar. Ela sabe muito bem o que a PM faz, tanto no mato quanto nas favelas. O que ela não pode tolerar é que se filmem essas coisas. Se houvesse uma noção de respeito ao cidadão, em vez de estarmos discutindo a má qualidade do caráter daqueles dez bandidos, estaríamos cuidando de acabar com a Justiça Militar, que mantém em liberdades os criminosos que não foram filmados.

Um novo ralo
Os Estados e municípios estão usando um novo ralo para se endividarem. Tomam o dinheiro emprestado junto à banca a 4% ao mês sob a forma de antecipação de receita orçamentária, a ARO. Empenham a receita e depois não honram os compromissos administrativos. Foi com AROs que o governador Orestes Quércia quebrou São Paulo.
Só quem pode acabar com essa farra é o Conselho Monetário Nacional, aquela linha telefônica cruzada que reúne os ministros Pedro Malan e Antonio Kandir, além de Gustavo Loyola, presidente do BC.

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