São Paulo, quarta-feira, 9 de abril de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Presidente acha que tortura é questão cultural

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Muita coisa já se disse e se escreveu sobre a violência dos PMs em Diadema. Houve um movimento de indignação geral. Arranjaram-se algumas punições. O escândalo atingiu, graças à TV, dimensões internacionais. A frase mais fantástica, a reação mais odiosa, a declaração mais infeliz foi a seguinte. Policiais espancam e matam pessoas comuns. A coisa aparece na TV. Surge alguém e diz: "No fundo, esse é um problema cultural".
Ah, é? Bandidos fardados matam e torturam. Canalhas atacam a população. Celerados espancam e dão tiros contra cidadãos. E aí surge alguém dizendo: "No fundo, isso é um problema cultural".
E quem disse a frase não foi ninguém menos do que o presidente da República. O professor Fernando Henrique Cardoso. Ele disse isso nas páginas amarelas da "Veja". Reconheço que não se trata de uma fonte confiável. Qualquer opinião, qualquer frase, qualquer entrevistado se pasteuriza nas entrevistas das páginas amarelas. Não se reconhece o estilo próprio de cada entrevistado. Tudo parece ser objeto de de maquiagem estilística.
Será que Fernando Henrique disse mesmo isso? Que a tortura dos PMs é "um problema cultural"? Acho até que ele está certo. De fato, prossegue a entrevista, "estamos num país em que sempre se tendeu a aceitar a violência policial". FHC, como sempre, é realista.
Mas dizer que a tortura em Diadema se resume a uma questão cultural signifca o seguinte: tudo, no Brasil, é questão cultural. Durante quase uma década, vivemos o drama da inflação. Não faltou quem dissesse que inflação, no Brasil, é problema cultural. A população se acostumou com o aumento de preços... Ou então: a impunidade, a corrupção são problemas culturais... isto é, há uma suposta "cultura da corrupção", de modo que nada podemos fazer, exceto contemplá-la... Tudo é cultural!
Estabelece-se, com isso, um álibi conservador. Pois dizer que determinado problema "é cultural" significa dizer que nada de concreto pode ser feito contra o problema exposto.
Goebbels, o ideólogo nazista, gostava de dizer: "Quando ouço a palavra cultura, saco o meu revólver". Minha tendência é fazer o mesmo, ainda que tomando a frase em sentido bastante diferente. "Cultura", no Brasil, tornou-se sinônimo de desculpa diante da barbárie. Nossas "tradições culturais" incluem a idéia da violência policial, do racismo, da violência de classes, da ostentação dos novos-ricos, da impunidade. Tudo se inocenta, se açucara, se embeleza, quando se diz: "É nossa cultura...!"
Eis então que um sociólogo, um homem esclarecido, afinal, invoca a mesma patacoada: "É nossa cultura!" Que um PM criminoso espanque pessoas na rua, eis... um dado de nossa cultura! Uma afirmação de brasilidade...
Nunca a sociologia se prestou a tanta indiferença. Que FHC seja um realista, não tenho a nada a opor. Mas que ele, com tanta distância pseudocientífica, explique um espancamento como "dado cultural", eis aí uma beleza de que nem Gilberto Freyre seria capaz.
Trata-se, no fundo, do conformismo da esquerda. Abordo aqui um problema mais amplo do que o da diminuta consciência, do ínfimo mal-estar ético que possa ocupar uma autoridade pública em seus momentos de ócio.
Todos os esquerdistas sempre acreditaram em rupturas. Houve a esperança de uma ruptura revolucionária; desistiu-se dela. Houve também a esperança de uma ruptura democrática: isso tampouco aconteceu, tivemos de contar com Tancredo e com Sarney.
Surgiu assim um ressentimento: nenhuma mudança foi para valer, moratórias e reformas agrárias vieram só para inglês ver, a Constituinte foi uma farsa, e mesmo a eleição de um esquerdista como Fernando Henrique foi vitória do conservadorismo.
O resultado é que ficamos ainda esperando uma "revolução" que não houve. Estamos sempre exigindo rupturas. Não é outra a razão para toda a retórica em torno de uma CPI que não "acabe em pizza". No fundo, sabe-se que "vai acabar em pizza", isto é, sabe-se que não será uma revolução em nosso sistema financeiro.
Não tenho nostalgia da revolução, não sou órfão do esquerdismo leninista. Acho, portanto, o seguinte: nada mudará do dia para a noite. Muitas CPIs terão de ser feitas, muitas denúncias da violência policial haverão de aparecer.
Nada mudará a curto prazo. Mas a cada escândalo, talvez, a esquerda terá meios de acumular forças, de solidificar suas posições.
Tome-se o caso de Diadema. A população reage escandalizada. Pura reação emocional, sem dúvida. Daqui a dez dias, o noticiário mostrará um pedófilo matando uma garotinha linda, e todo mundo será a favor da pena de morte.
A pena de morte, assim como a tortura policial em Diadema, são detestáveis. A opinião pública se mostrará liberal ou fascista conforme o que apareça na TV. E daí? É sinal para que sejamos céticos, cínicos, "sociólogos"? Creio que não.
Os eventos de Diadema são a senha para que se aproveite o clima vigente na opinião pública. Servem para firmar uma legislação mais vigorosa contra a tortura, um empenho mais claro pelos direitos humanos, uma campanha para que os crimes da polícia sejam julgados pela Justiça Civil. Só isso. Não há revolução em curso. Um evento em sentido contrário favorecerá a polícia e a pena de morte. Não importa.
O mundo da política se fundamenta no esforço de tornar definitivas algumas vitórias circunstanciais. Todo progresso é aproveitamento, é oportunismo, nesse sentido. Cabe aproveitar a onda contra a PM, só isso.
É entretanto errado julgar tudo o que acontece como mero sobressalto fugaz, como idiotice inútil a ser vencida pelo tempo. O tempo está em nossas mãos, para ser aproveitado politicamente. Não há revolução, há conquistas pontuais, que podem ou não ser feitas.
Há uma orfandade acrítica da "Revolução" com "R" maiúsculo. Afirma mais ou menos o seguinte: como não é possível revolucionar coisa nenhuma, deixemos as coisas como estão.
É nesse ambiente ideológico que se situa FHC, e muita gente também. A PM mata e barbariza. Ora, ora... tudo é uma questão cultural... de modo que não me meto nisso... Cinismo sociológico, sinônimo de conformismo e imobilidade: pois é também "cultural", se quisermos, a repulsa, a revolta que muita gente sentiu diante das barbaridades de Diadema.
Escolha você a cultura que quiser. A minha não é a de Fernando Henrique, esse sociólogo embalado agora em doces dominações "gilbertofreyreanas". ACM tornou-se ícone da nacionalidade, da velha oligarquia tão doce de Jorge Amado, num ambiente marcado pela globalização. "Cultura brasileira" é hoje sinônimo de dominação e violência. Como sempre, cercada de sorrisos.
Como não houve revolução, o melhor é o "relaxe e goze". Desde que você não seja o morto de Diadema; aí, você chega a aceitar que a CPI termine em pizza, até por orgulho nacionalista. O Brasil tornou-se objeto de gozo, de desfrute, de atitude acrítica, por parte dos grandes críticos, dos grandes inconformados, dos grandes esquerdistas.
Mas se há algum papel a ser cumprido pela esquerda hoje em dia, é o de ser "oportunista": aproveitar as vogas em torno do caso Diadema, por exemplo, para fazer valer suas posições. Nunca, em todo caso, a do sorriso sociológico que diz: "Cultura... modismo... hoje isto, amanhã aquilo...".
Pois isso nada mais é que dominação esclarecida, indiferença ilustrada, criticismo inerte. "Questão cultural"! Tortura e assassinato são agora "questões culturais"! Logo, não há o que fazer... Belo esquerdismo. O presidente Fernando Henrique é uma belezinha como sociólogo.

Texto Anterior: "Os Ossos do Barão" estréia dia 28 no SBT
Próximo Texto: Dias dá volta à carreira em 80 obras
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.