São Paulo, quinta-feira, 10 de abril de 1997
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Terra prometida

OTAVIO FRIAS FILHO

"O planalto central do Brasil desce, nos litorais do Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio Grande a Minas". Assim começa "Os Sertões" e esse mesmo planalto pelo lado oposto, na sua margem noroeste.
O oceano que ele "assoberba", ali, é a umidade escaldante do Pantanal. Nos "chapadões" que se projetam por centenas de quilômetros, porém, muda o clima, é outra a vegetação, como se o visitante fosse transportado não para o alto das "escarpas inteiriças", mas para alguma utopia agrícola, talvez o interior do Kansas.
Dá para entender a atração que o presidente da República tem pela cidade de Sinop, que ele já visitou duas vezes. É uma injeção de otimismo atravessar horas de plantações mecanizadas, o horizonte sempre a perder de vista, escolas e hospitais surgindo em cidades que brotam com a aparente facilidade da soja ou do milho.
Tudo isso sem que o Estado tenha de fazer quase nada: o ideal de qualquer governante. Não que as terras sejam férteis. A vegetação original é o tedioso cerrado, pouco melhor que a caatinga. Sendo o planalto brasileiro um dos terrenos mais antigos do planeta, não é surpresa que a meteorologia naquele fim de mundo pareça pré-histórica.
São nevoeiros pesados e tempestades elétricas que aparecem do nada e somem várias vezes ao dia, sem deixar vestígio, pois a lama resiste pouco tempo ao sol. Esse regime de chuvas favorece a agricultura. Quanto à terra, ela é só o suporte da planta, como disse um fazendeiro local sobre as virtudes do calcário e do fósforo.
As reportagens sobre a Chapada dos Parecis formam um contraste brutal com as fotos de Sebastião Salgado publicadas na edição de domingo. São imagens que documentam os rejeitos do campo que não deu certo, emolduradas pelo réquiem de Chico Buarque e pelo libelo de José Saramago contra a providência divina.
Não foi essa a intenção, mas do seu texto, do caderno inteiro ressumava uma sensação de revolta impotente, de lamento pelo irreversível. Essa gente teria sido salva por uma reforma agrária que não houve, como os avós dos gaúchos que agora colonizam a chapada se beneficiaram de uma "reforma agrária" natural.
Quase ninguém mais acredita que a reforma agrária seja uma solução econômica. Como solução social, poucos acreditam que ela possa ser aplicada generalizadamente, fora de situações específicas ou críticas; já se avançou demais na direção do capitalismo de escala no campo. E adianta pouco distribuir terras sem distribuir educação.
Por isso o problema da reforma agrária tem tanta força como símbolo hoje, ao perder atualidade. Ele isola e expressa o problema social na sua forma mais "pura", desligada da economia. Desafia o Estado cada vez mais omisso que planejamos ter, enquanto exibe a devastação infligida aos grupos humanos que ficaram para trás.

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