São Paulo, quinta-feira, 10 de abril de 1997
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Salman Rushdie na Europa de Le Pen

BETTY MILAN

"Onde quer que eu me hospede, nenhum servidor estrangeiro deverá permanecer." Uma ordem que teria sido dada por Jean-Marie Le Pen, segundo um locutor da Rádio Alsácia, pouco antes de o político entrar em Estrasburgo (França) para a reunião do seu partido, a Frente Nacional. Seja a informação verdadeira ou não, ela corresponde a uma possibilidade de Le Pen.
Um brasileiro dificilmente imagina que a ordem possa ter sido proferida. Não sendo insensível, sabe da desfaçatez do rico em relação ao pobre, mas não se lembra de uma situação em que alguém, pelo simples fato de ser estrangeiro, tenha sido excluído de um recinto ou tenha nele sido impedido de entrar. O Brasil é marcadamente classista, porém não se exercita numa xenofobia que leve à exclusão.
Hitler foi um sonho da Europa que uma certa França agora reatualiza, exibindo em Estrasburgo milícias vestidas de negro, que desfilam gritando "Imigrante fora". Trata-se de uma cena que, sendo arcaica, pode tomar um país que tradicionalmente não resiste ao macabro, cultiva-o. Basta, para se dar conta disso, considerar o gosto francês pela dança em que uma múmia putrefata era o par de um homem ou de uma mulher: a dança macabra.
Ninguém faz do cartesianismo uma profissão de fé sem correr o risco de se deixar vencer pela desrazão. A França está às voltas com o totalitarismo que existe também nela e cuja forma atual é o lepenismo destilando ódio contra os estrangeiros.
Diante disso, é justo que o título do novo livro de Jacques Derrida, "Cosmopolitas de todos os países, esforçai-vos ainda", estivesse na primeira página do programa do Parlamento Internacional dos Escritores, que se reuniu em Estrasburgo às vésperas da manifestação lepenista, para realizar o 2º Congresso das Cidades-Refúgio.
Desde que foi criado, em 1993, o parlamento tem como meta gerar espaços novos de liberdade, troca e solidariedade. Organizou-se em torno de Salman Rushdie, quando este foi condenado à morte pelo aiatolá Khomeini, e hoje recebe vários escritores perseguidos numa rede de "cidades-refúgio", que se estende de Helsinque a Sevilha e de Caen a Viena.
Nascido em Estrasburgo e Berlim, o movimento de solidariedade ganhou Barcelona, Veneza, Gotemburgo, Bonn, Frankfurt... Um observatório da liberdade foi aberto em Barcelona, e um centro de pesquisa da censura, em Caen.
O Brasil, não tendo ainda oferecido nenhuma cidade à rede, não faz jus ao seu tamanho, aos seus escritores perseguidos e à sua literatura precursora. Considere-se a aventura de Graciliano Ramos e "Memórias do Cárcere", antecipando "O Pavilhão dos Cancerosos", de Soljenítsin (*).
O Brasil pode estar a 10.000 km de Estrasburgo, mas nem por isso pode ser indiferente à questão colocada pelo Parlamento Internacional dos Escritores, porque, como todos os países, precisa da literatura, e esta não pode não correr o risco de desagradar.
Isso foi o que Rushdie disse ao abrir a sessão solene em que passou a presidência do parlamento a Wole Soyinka. Afirmou que o romance só é bom se for irreverente, o que significa que o verdadeiro escritor sabe que está sujeito à repressão, e que escrever significa resistir.
"Last but not least", o autor dos "Versículos Satânicos" lembrou que a beleza da literatura é a de uma voz que nenhum poder consegue extinguir e, precisamente pela sua resistência, ameaça os que não seriam, como Rushdie, capazes de dizer, diante das milícias lepenistas, que é preciso agora, mais do que nunca, fazer valer a pena -"the pen", na língua literária de Salman Rushdie, a inglesa.

(*) Alain Mangin, no prefácio a "Brasil, país do futuro", de Stefan Zweig (Editions de l'Aube, 1992).

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