São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Um gênio passado a limpo

OLIVIER TONI

A obra de Mozart, um dos compositores mais identificados com o processo organizativo do sistema tonal, ainda não foi devidamente equacionada, se tomarmos como ponto de referência a evolução das coordenadas históricas, políticas, sociológicas e estilísticas e, ao mesmo tempo, a ordenação fônica que caracteriza determinada época, o que permite avaliar o processo de elaboração realizado pelo compositor ao herdar todo um material, supostamente exaurido, e colocado à sua disposição.
Está fora de dúvida que toda a obra mozartiana nunca deixará de estar vinculada ao eixo de intermediação entre a linguagem musical do passado e as metamorfoses ocorridas na última fase do romantismo, diretamente responsáveis pelo alicerçamento da música do nosso século. Quem, além de Mozart -no "Minuetto" e na cadência final do "Ein Musikalische Spass" (KV 522)-, terá se entretido mais com o sabor e o impacto da dissonância?
Andrew Steptoe relata, com grande propriedade, a vida dos músicos na sociedade vienense ao tempo de Mozart.
Lemos, sem nos surpreender, que, se "a vida em uma residência aristocrática tinha vantagens, principalmente em termos de segurança de emprego", entretanto, "a posição do artista era fixada nos escalões mais baixos da hierarquia social". Mais adiante, encontramos um depoimento precioso que demonstra, inequivocamente, como muitos artistas encontravam dificuldades em adaptar-se às regras estabelecidas pela vida em sociedade. Segundo ele, Mozart "trabalhava no quarteto KV 421-1783, enquanto sua mulher Constanze dava à luz o primeiro filho do casal, no cômodo contíguo". E não deixa de surpreender a leitura de uma carta endereçada a Constanze, em que a linguagem utilizada por Mozart atinge uma vulgaridade que enrubesceria qualquer frequentador de cinema pornográfico.
O livro reproduz um texto de Karoline Pichler, romancista aristocrática que conviveu com Haydn e Mozart. Ela se refere aos dois, afirmando que "não mostravam, nas suas relações pessoais, nenhuma espécie de refinamento intelectual de tendência culta ou mais elevada. Qualidades medíocres, humor prosaico (...), mas que profundidade, que mundo de fantasia, harmonia, melodia e sentimento se achavam ocultos dentro desses exteriores destituídos de brilho". O alcance da visão aristocrática da inexpressiva romancista nada fez, porém, para salvar os 90 volumes reunidos da obra dos dois compositores "da quase completa obscuridade póstuma". Inconscientemente, a escritora estava confirmando que as idéias musicais, quando habilmente expressas por meio de sons, possuem maior sabor que o conteúdo descritivo das palavras.
As apresentações de obras de Mozart na Itália, Península Ibérica, Escandinávia e Europa Oriental também são listadas pelo compêndio.
Ficaríamos contentes se tivessem sido registradas, igualmente, as duas apresentações conhecidas do "Requiem" ocorridas no Brasil durante o século 19: uma no Rio de Janeiro, sob a direção do Padre José Maurício, e outra em São João del Rey, em 1833, sob a responsabilidade da Sociedade Ribeiro Bastos, que até hoje conserva em seu arquivo o material utilizado por instrumentistas e cantores na histórica apresentação em Minas Gerais.
São interessantes as informações que fazem referência às interpretações do final do século 18, as quais procuram -transcrevendo importantes depoimentos de renomados teóricos e contemporâneos de Mozart- esclarecer o significado de discutida terminologia como "expressão", "andamento", "articulação" e "ornamentação". Robin Stowell discorre sobre inúmeras questões concernentes à execução instrumental, tratando dos problemas da articulação no período anterior e posterior ao aparecimento do arco "Tourte", bem como da execução das "appogiature" e acentuações fundamentadas pelo discurso harmônico.
É admirável, também, a contribuição do musicólogo Philippe Autexier, enumerando cronologicamente os eventos e as composições maçônicas de Mozart. Ele analisa minuciosamente a presença dos símbolos maçônicos existentes na música do compositor, que, embora pudesse aparentar certa despreocupação -ou alienação?- com os acontecimentos políticos, sentia enorme desconforto frente às desigualdades sociais.
Por essa razão, escolheu a maçonaria, única forma então de contestação política ao poder absolutista, que equivale, nos dias de hoje, às mais variadas modalidades de atuação do chamado neoliberalismo. Sua revolta se manifesta numa dedicatória à rainha Charlotte da Inglaterra: "Dignai-vos, Senhora, receber meus pobres presentes. Sois dos primeiros destinados a reinar sobre um povo livre". Não deixa de ser significativa a afirmação de Jacques Chailley de que "toda a carreira do compositor se desenvolveu num ambiente, de algum modo, paramaçônico".
A música de Mozart está permeada de citações, em que predominam certas "marchinhas" que aparecem geralmente tocadas pelo grupo das madeiras. Não é por acaso que os mesmos ritmos e instrumental empregado se confundam tanto com a sonoridade das "harmoniemusik" -ou colunas de harmonia-, agrupamentos de música militar muito comuns na época de Mozart, cujos integrantes, tocando fagotes, clarinetes, flautas e "bassethorns", pertenciam quase todos à maçonaria.
Desde muito cedo, Mozart conviveu com amigos, músicos e parentes maçons. Aos 16 anos, compôs "sobre as palavras de um hino ritual" e, depois, durante toda sua vida, escreveu obras de carregado sentido maçônico. Certamente não foi obra do acaso que a estréia da "Flauta Mágica" tenha ocorrido na mesma data em que, em Paris, a Assembléia Nacional Constituinte realizava sua última sessão, quando anistiou todos os agitadores condenados desde 1788.
Não há dúvida que, de forma muito mais eloquente, as últimas obras de Mozart -"A Flauta Mágica" e "Requiem"- empregam em larga escala e de forma desconcertante uma infinidade de elementos simbólicos, como ritmos característicos, timbres, acordes e citações, além de inusitadas sonoridades com a presença de clarinetes, "bassethorns" e trombones; em nenhum momento traduzem sentimentos de autoritarismo, ambição ou vulgaridade. Estas sonoridades aparecem sempre no momento em que Mozart nos conduz a uma paisagem infinita, onde reinam a dignidade, a fraternidade e a sabedoria, atributos qualificativos e norteadores da conduta maçônica.

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