São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Raízes da ciência brasileira

ANTONIO VIDEIRA

É bem conhecida a importância que a França teve no papel de transmissora de saberes e conhecimentos para nosso país. Além disso, cientistas e diplomatas franceses participaram decisivamente do processo de institucionalização da ciência no Brasil. Ainda durante o regime colonial, as primeiras academias criadas inspiraram-se em suas congêneres francesas. Pouco tempo depois, e durante todo o século 19, nosso país foi visitado por várias missões científicas e artísticas francesas, sendo que alguns membros dessas missões aqui permaneceram por um longo período ou mesmo para sempre. Desde o final do século 18, com a Revolução Francesa, até o fim da Segunda Guerra Mundial, a França sempre desempenhou o papel de principal modelo a ser usado ou copiado para que o Brasil superasse o seu já secular atraso científico-tecnológico em que se viu colocado por Portugal, enquanto este foi a nossa metrópole.
Até muito recentemente, pensava-se que as nossas relações com a França fossem assimétricas. No entanto, como é mostrado em vários estudos que compõem "A Ciência nas Relações Brasil-França (1850-1950)", a busca, a recepção e a assimilação das lições a serem aprendidas com os franceses não foram feitas, por nós brasileiros, de forma cega. Fica claro que a transmissão de conhecimento científico não se dá apenas numa única direção, pois "a 'oferta' (de conhecimento científico) não é localizada unicamente no 'centro' (os países mais desenvolvidos), e a 'demanda', na 'periferia' (países como o Brasil)" (pág. 28). A transmissão de conhecimento pressupõe um comportamento ativo daqueles que são frequentemente considerados como subdesenvolvidos cientificamente. Em muitas situações, como o já conhecido caso da fundação da USP, em 1934, procurou-se retirar, ou assimilar, da França somente aquilo que ela tinha de melhor para oferecer. Quando isso não acontecia, procuravam-se em outros países os elementos humanos e materiais necessários para o sucesso dos programas que se queriam ver implantados entre nós.
Um dos grandes objetivos desta coletânea, resultado de um encontro ocorrido na USP em 1987, é a elaboração, por meio da idéia de que a ciência se faz mediante trocas e intercâmbios em vários outros níveis que não apenas o científico, de um referencial teórico capaz de elucidar o que somos enquanto país produtor de conhecimento científico. Para isso, alarga-se o conceito de ciência tal como este é usualmente compreendido. A ciência, dentro do conjunto de contextos em que ela é efetivamente construída -nos quais valores culturais, econômicos, políticos, históricos etc. são importantes-, não é feita apenas por cientistas. Na verdade, estes últimos constituem um dos seus elementos componentes. Outros seriam, por exemplo, políticos, técnicos, diplomatas, industriais, militares etc.
A análise das interações científicas revela que não era suficiente tentar manter o prestígio adquirido desde a Revolução Francesa para garantir a permanência do modelo francês. A transmissão de conhecimentos também se faz dentro de um ambiente tão competitivo quanto o econômico, o militar ou o das relações diplomáticas. Daí a necessidade sentida por um bom número de intelectuais franceses, contando com a ajuda e a participação de brasileiros, de criar grupos de atuação em nosso meio acadêmico-científico. Esses grupos deveriam ser os responsáveis pela transmissão da ciência francesa no Brasil. Como, por quê, quem, dentro de que contexto e com que objetivos esses grupos atuaram são algumas das questões colocadas e devidamente respondidas neste livro.
Por sua vez, o livro "O Almirante e o Novo Prometeu" tem o mérito de trazer para discussão as atividades realizadas em prol da ciência brasileira, durante dois terços do século 20, por um importante personagem: o Almirante Álvaro Alberto da Motta e Silva. Muito conhecido no meio acadêmico, ele foi um dos fundadores do CNPq (Conselho Nacional de Pesquisa) e seu primeiro presidente. No entanto, não tão conhecida assim é a trajetória que o habilitou a ocupar esse cargo. Uma das razões que tornam Álvaro Alberto uma referência obrigatória para a história da ciência em nosso país foi sua luta pela criação das instituições necessárias para que políticas científicas e, a partir delas, programas de desenvolvimento industrial e econômico pudessem ser uma prática corrente.
O sucesso de sua atuação deve-se também à sua formação múltipla, o que lhe permitiu dialogar com diferentes segmentos da sociedade brasileira: políticos, militares, cientistas, entre outros. Militar da Marinha, formado pela Escola Politécnica, especialista em explosivos (continuando uma tradição familiar que remontava a seu avô), membro da Academia Brasileira de Ciências, diplomata na ONU durante as negociações feitas sobre o tório e o urânio, Álvaro Alberto reuniu algumas qualidades que seriam importantes para tornar real um velho sonho da comunidade científica brasileira: a criação de um órgão exclusivamente dedicado ao fomento da pesquisa.
Na época em que esteve na ONU, o almirante Álvaro Alberto desenvolveu a tese da política de compensações específicas. Em outras palavras, os países possuidores de grandes reservas de minerais radioativos cederiam parte de suas reservas em troca de tecnologia. Sua atuação deu-lhe imenso prestígio nos meios políticos e o levou a se dedicar à criação de um órgão destinado exclusivamente à gestão dos assuntos relacionados com a área nuclear, a futura Comissão Nacional de Energia Nuclear.
O livro, dividido em capítulos escritos por pesquisadores que organizaram o acervo deixado pelo almirante, preocupa-se basicamente em chamar a atenção para a personalidade singular de Álvaro Alberto, traçar a sua formação e resgatar a importância de seu papel. A obra cumpre bem o seu propósito, embora seja inegavelmente tendenciosa, pois os autores dos capítulos são obviamente simpáticos ao almirante. A simpatia é tanta que se fica com a impressão de que, por trás do resgate da figura de Álvaro Alberto, existe a intenção de se criar um herói brasileiro na área da ciência (págs. 10-13). Pode ser que, de fato, Álvaro Alberto possuísse todas aquelas qualidades apontadas logo na introdução. No entanto, como se trata de um livro no domínio da história da ciência, teria sido necessário guardar uma maior distância com o objeto de estudo. Essa distância, ou imparcialidade, talvez pudesse ter sido alcançada pela utilização do material inédito que se encontra no arquivo recentemente organizado. Essa ausência é tanto mais sentida já que o material deixado pelo almirante deve ser extremamente rico e interessante.
Além disso, certos eventos importantes, não apenas na trajetória de Álvaro Alberto, mas para que possamos compreender os rumos dados ao CNPq, à política científica em nosso país e à própria ciência não são explicados no livro, mesmo quando mencionados. Refiro-me, por exemplo, à saída de Álvaro Alberto da presidência do CNPq, em 1955, a partir de divergências com Juarez Távora. O leitor fica sem saber os motivos e as consequências do confronto entre os dois. A inexistência de uma discussão em torno desse ponto traduz bem o maior problema do livro: a generalidade das análises.
De qualquer forma, ambos os livros demonstram o vigor da área de história da ciência no Brasil, ainda que se possa considerá-la em processo de amadurecimento.

Antonio Augusto Passos Videira é professor do departamento de filosofia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

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