São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Cadáveres ilustres

IVANA BENTES

A furiosa "resenha" de Eduardo Escorel sobre meu livro "Joaquim Pedro de Andrade - a Revolução Intimista" (Jornal de Resenhas, 14/03/97) é exemplar quanto às estratégias de poder e exclusão que dominam os currais culturais no Brasil, além de revelar uma visão limitada do que é crítica cinematográfica.
O livro não é obra de ocasião calcada em fuxicos ou colagem de citações. Da vida do cineasta Joaquim Pedro só me interessam seus filmes, e foi de onde parti para chegar a um perfil, equilibrando biografia e análise da obra.
O fotógrafo Mário Carneiro, colaborador e amigo do diretor, colocou ao meu dispor 12 horas de depoimentos sobre Joaquim. Usei ainda 7 entrevistas feitas para o livro, bibliografia com 40 artigos e depoimentos, fora a revisão de 12 dos 14 filmes e vídeos analisados. Trabalho feito ao longo de um ano de pesquisa, além de seis meses para a redação do perfil.
Com que autoridade o "resenhista" vem falar em "falta de pesquisa", "pressa na redação" ou que Joaquim Pedro não teria gostado do livro? Que tipo de procuração pós-morte foi dada a Escorel? Montador de cinco filmes de Joaquim, não foi procurado por mim e parece que ficou muito chateado.
Dizer que o texto é "laudatório" mostra uma visão mesquinha da crítica, confundindo análise com juízo de boletim escolar. Mentalidade que destruiu a crítica de cinema no Brasil. Não falo sobre obras que não me motivam. Escrevendo sobre cinema desde 1986, nunca me motivou a obra de Escorel, que decreta que "O Homem do Pau Brasil" não é um bom filme. O que seria um "bom filme"? "O Barão do Rio Branco", de Escorel, ou os pseudodocumentários de TV, como "Gente que Faz", que andou dirigindo? (aliás, mesmo "ruins", mereceriam estudo). Sem conseguir atacar minha análise, Escorel se esforça em criticar o filme de Joaquim Pedro! Elogios? Apenas para os que montou. É esse o tipo de "rigor" que move a "resenha".
Não há erro algum em aproximar "Couro de Gato" e "A Velha a Fiar", de Humberto Mauro, filmado três anos depois. Não se tratava de indicar "influências" de Mauro sobre Joaquim, mas de "aproximar" "Couro de Gato" da "pureza, economia e humor" de "A Velha a Fiar", o que disse e torno a dizer. O mesmo vale para a relação entre "Macunaíma" e "O Rei da Vela", obras geradas num mesmo contexto, o do tropicalismo. Os outros "enganos" conceituais apontados caem no mesmo vazio de argumentos que a mera leitura das análises rebate.
Escorel, no seu zelo raivoso, me acusa do ter traduzido mal a expressão "bête et méchant" ao usar "besta e chato", termos do próprio Joaquim para definir o filme "Macunaíma". Querendo ser "estúpido e cruel" (tradução de Escorel), ataca Joaquim e torna-se "besta e chato". O livro tem três erros de datas e, dada a avidez com que os procurou, o montador Escorel está desperdiçando uma promissora carreira como revisor.
Em nome de quem e de onde fala Escorel? No seu provincianismo imenso, o Brasil continua alimentando os feudos culturais, onde não se pode entrar sem beijar a mão dos donos. Para fazer um trabalho nesses domínios é preciso "negociar" com a vaidade e má-fé de alguns.
Conhecendo a "cozinha" da cultura no Brasil, sabemos que não se atira por esporte com artilharia tão pesada. Tomando meu "Joaquim Pedro" como bucha de canhão, as "viúvas" choram porque ninguém mais lhes pede licença para falar de Joaquim e Glauber Rocha. Mas impiedosa mesmo é a história, e nela ninguém entra como gigolô da memória ou carregador de alça de caixão.

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