São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Marxismo, crítica e utopia

RICARDO MUSSE

Os quatro ensaios aqui coligidos, cuja primeira edição em livro data de 1964, não por acaso ano da publicação de "Homem Unidimensional", foram escritos para a revista do Instituto de Pesquisas Sociais (de Frankfurt) entre 1934 e 1938. Ex-assistente de Martin Heidegger, mas também militante socialista e judeu, Herbert Marcuse integrou-se ao instituto comandado por Max Horkheimer -a conselho de Edmund Husserl- em fins de 1932. Imediatamente foi enviado, sucessivamente, às filiais recém-abertas de Genebra e Nova York.
Esses ensaios foram redigidos na Suíça e nos EUA, em alemão -para evitar que o discurso nazista se mantivesse como voz única-, para uma revista publicada pela Félix Alcan em Paris. Tal imbróglio explica por si só a metáfora utilizada por Theodor Adorno para caracterizar a produção intelectual do Instituto nos anos 30: "Como náufragos enviavam, a não se sabe quem, mensagens em garrafas jogadas em alto mar".
O primeiro desses artigos, "O Combate ao Liberalismo na Concepção Totalitária do Estado", de 1934, procura responder a uma indagação básica: por que a doutrina do Estado-total, justificativa e programa de ação do nazismo, tomou como adversário principal, "inimigo mortal", estranhamente, não o marxismo, mas o liberalismo?
Para responder a essa questão, Marcuse inicialmente examina os fundamentos dessa "visão de mundo" -o naturalismo irracionalista, o vitalismo (distinto daquele de Dilthey e Nietzsche), o existencialismo político. Os alvos principais dessa doutrina são o racionalismo e o materialismo, cabendo ao próprio liberalismo -tomado enquanto modelo econômico e social- um lugar periférico. Porém, mais que adequação ideológica, o destaque conferido ao combate ao liberalismo indica uma característica decisiva da sociedade nazista: a negação da ordem social e econômica liberal.
Essa mutação é explicada por Marcuse nos termos da análise econômica -posteriormente descartada, por simplista, pelo próprio instituto, no final dos anos 30, seja na interpretação de Friedrich Pollock ou na versão de Franz Neumann- que anunciava a superação do capitalismo "concorrencial" por um modelo "monopolista". A sociedade organizada a partir da livre concorrência de empresários individuais autônomos, o capitalismo mercantil e industrial, é substituída pelo capitalismo monopolista, cujas "grandes unidades" -cartéis, trustes etc.- exigem um Estado forte, mobilizador. O que mais importa nessa passagem, porém, independentemente da caracterização do ponto de chegada, é o fato de que se trata de um desdobramento histórico da ordem liberal que preserva as suas premissas: "Uma organização econômica privada da sociedade com base no reconhecimento da propriedade particular e da iniciativa privada do empresário".
Imposição do capitalismo monopolista, a doutrina do Estado-total -ao mesmo tempo, organização, teoria social e justificativa ideológica da sociedade nazista- tem um de seus pés assentado no existencialismo político. A situação "existencial", definida enquanto norma absoluta para si própria, inacessível a qualquer crítica racional, é a única que se dispensa de "justificar" uma imagem de homem -voltada ao sacrifício, ao cumprimento de deveres- que inverte os ideais de "humanidade" construídos pela civilização ocidental e um poder político que se situa além de toda legalidade e legitimidade. O desdobramento político do existencialismo surge, portanto, como uma traição aos ideais filosóficos que essa corrente outrora pretendera continuar. Assim, Marcuse rompe explicitamente com Heidegger sem repudiar o seu passado, abrindo caminho para uma interpretação -mantida ao longo da sua vida- que preserva o Heidegger de "Ser e Tempo".
Em "Sobre o Caráter Afirmativo da Cultura", Marcuse reitera o procedimento crítico. Seu objeto agora, quase um desdobramento da ordem social liberal, é a cultura pertencente à época burguesa, que distinguiu e elevou o mundo espiritual -nos termos de uma esfera de valores autônoma- em relação ao plano da reprodução material (a "civilização"). Nessa "cultura afirmativa", "as atividades e objetos culturais adquirem uma solenidade elevada muito acima do cotidiano: sua recepção se converte em ato de celebração e exaltação".
Afirmação de um mundo mais "nobre", realizável a partir da mera "interioridade", essa "cultura" se coloca cada vez mais a serviço do controle das massas e da mera auto-exaltação legitimadora, impondo-se como forma de ocultamento da atrofia corporal e psíquica do indivíduo. Mas ela não serve apenas para submeter ideologicamente a existência à economia do capitalismo. Na medida em que escapa à lei do valor, dissolve e supera as relações reificadas. O que não deixa de ter como contrapartida uma baixa capacidade de resistência à realidade reificada. Por fim, Marcuse não hesita em afirmar que "a cultura afirmativa contribui em grande parte para que os indivíduos, libertos já por mais de quatrocentos anos, marchem tão bem nas colunas comunitárias do Estado autoritário".
Nos dois ensaios restantes, "Filosofia e Teoria Crítica" e "Para a Crítica do Hedonismo", o tom muda inequivocamente. Os exemplos de crítica dialética, que adotam como pedra de toque a capacidade da cultura e da civilização burguesa de resistir à ascensão da sociedade nazista, cedem lugar a uma preocupação prospectiva, à tentativa de preencher com um conteúdo utópico o projeto de emancipação, o esqueleto de uma sociedade racional futura esboçado por Horkheimer em "Teoria Tradicional e Teoria Crítica" (1937).
Marcuse discorda da âncora escolhida por Horkheimer como sustentáculo da "teoria crítica": a ciência (e, com ela, a técnica), excessivamente presa à ordem estabelecida. Restabelece, na linhagem de Lukács e Korsch, o papel central da filosofia, não só por meio de uma retomada do caráter filosófico do marxismo, latente na tese jovem-hegeliana que apresenta o socialismo como a "realização da filosofia", mas principalmente por meio da preocupação em preservar o "conteúdo de verdade" dos conceitos e problemas filosóficos. Essa reabilitação da filosofia se dá em duas frentes: no resgate do conceito idealista de razão e no protesto materialista do hedonismo.
Categoria fundamental do pensamento filosófico, a razão, na medida em que coloca o ser sob o pensamento, tornou-se a base do esforço crítico. Embora a filosofia clássica do idealismo alemão tenha interiorizado esse conceito, enfatizando em seus sistemas antes a sua estática que a sua dinâmica, o desdobramento lógico de suas relações torna-se um momento da própria teoria crítica: "Razão, espírito, moralidade, conhecimento, felicidade não são apenas categorias da filosofia burguesa, são também assuntos da humanidade".
A concepção idealista de razão, porém, despreza a variedade empírica do particular, sacrificando o indivíduo. Para se contrapor a isso, Marcuse enfatiza a noção materialista -que aponta para além da mera subjetividade, reconciliando-se com o conhecimento- de felicidade (eudemonismo) e de prazer (hedonismo). "O hedonismo é o pólo oposto da filosofia da razão. Ambas conservam, de maneira abstrata, possibilidades da sociedade existente que apontam para a sociedade humana real. A filosofia da razão conservou o desenvolvimento das forças produtivas, a livre configuração racional das condições vitais, a autonomia crítica dos indivíduos socializados; o hedonismo conservou o desenvolvimento completo e a satisfação das necessidades individuais, a emancipação de um processo de trabalho desumano, a entrega do mundo à fruição. Ambas são incompatíveis na sociedade atual". Além disso, Marcuse recupera também a "imaginação" tal como pensada pelos filósofos, enquanto função essencial do projeto utópico, logo, de uma teoria voltada para a emancipação.
Engana-se porém quem procurar ver aí uma retomada do velho "topos" do "elogio da filosofia". Na moderna separação dos meios de produção materiais e espirituais, no âmbito da filosofia profissional, as doutrinas filosóficas pouco têm a oferecer ao marxismo, quando muito servem como material para a crítica cultural das formas de ocultamento e falsa interpretação. A herança a ser preservada refere-se a uma forma cultural ultrapassada, às filosofias do passado: "Essa cultura já está desaparecendo, de tal modo que ocupar-se com ela não é mais motivo de um orgulho altivo, mas sim de tristeza".
Se, 30 anos depois de escritos, ao encontrarem a sua audiência, esses ensaios contribuíram para o furacão que então abalou os alicerces da sociedade burguesa, hoje, decorridos outros 30 anos da sua publicação em livro, retornam à situação original de mensagens de náufragos. Entretanto, a consolidação de novas fases e modelos de capitalismo, ao longo do século, não evitou que muito do que ali foi dito conservasse uma estranha e inquietante atualidade. Trata-se ainda de um insuperado programa para o futuro.

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