São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Políticas urbanas não-convencionais

REGINA MEYER

O que significa o processo eleitoral para as cidades e metrópoles brasileiras, quando estas assumem abertamente a forma-mercadoria, resolvendo a disputa política quase exclusivamente no campo da publicidade? O marketing e a publicidade pesaram mais na última eleição municipal em São Paulo que o desempenho administrativo dos candidatos.
Ocorre um processo intenso de substituição de informação por desinformação. Filmado de certo ângulo, um pequeno conjunto residencial toma proporções surpreendentes. Parece capaz de abrigar todos os sem-teto que ainda vivem nas ruas e sob os elevados da cidade. A imagem virtual do ônibus que desliza luzidio por avenidas largas e descongestionadas, carregando todos para seus distantes destinos, parece palpável. Habilmente produzida, a propaganda ganha força de realização.
Esse é o contexto no qual se insere este livro singular na história da gestão urbana no Brasil contemporâneo. Embora o ineditismo não seja um valor em si, é importante sublinhá-lo e apontar para a necessidade de se ampliar o número de publicações desse teor, único e poderoso antídoto ao processo de desinformação. O livro reúne práticas urbanas de 15 cidades brasileiras. Relata experiências inovadoras sobre os temas mais decisivos para a vida urbana das populações carentes: gestão e orçamento participativo, recuperação ambiental em áreas degradadas, regularização fundiária, transporte público, parceria e participação em programas de gestão urbana e habitação, além de uma experiência com menores de rua, em Santos.
Trata-se de um "livro vivo", no qual as graves questões que povoam o quadro urbano brasileiro ganham respostas concretas, implementadas em cidades governadas por diferentes partidos políticos.
No campo do orçamento participativo, as experiências de Porto Alegre e Betim mostram que estamos diante de um projeto político de governo bem definido. Apontado como o meio mais eficaz de redução das desigualdades nos municípios, a participação na gestão orçamentária é uma prática exigente, pois supõe radical mudança de mentalidade, do Executivo como da população. É promissor o ocorrido em Porto Alegre, onde as obras de saneamento básico foram substancialmente ampliadas: em 89, a rede de esgoto atendia só 46% da população, em 95, o atendimento atinge 74%. Certamente, tal prática enfrenta todas as resistências, da parte do Estado, como da própria sociedade. Romper um modelo de administração municipal quase sempre clientelístico e até corrupto implica conduzir na esfera política uma determinação de mudança de hábitos e procedimentos e vencer o desinteresse da população, que olha para o poder público com desconfiança.
A força e atualidade das experiências agrupadas em torno da recuperação ambiental em áreas degradadas impressionam o leitor. No seu conjunto, cinco projetos lidam com a chamada "urbanização predatória", traço mais constante do uso e ocupação do solo nas cidades brasileiras. O projeto desenvolvido pela Prefeitura de Jaboatão dos Guararapes, na bacia da Lagoa do Olho d'Água, foi selecionado pelas ONU como uma das "Cem Melhores Práticas", pela complexidade dos problemas enfrentados, pelos arranjos institucionais que organizou, pela reversão do quadro de degradação que produziu. Fundada em 1593, Jaboatão dos Guararapes recebeu o primeiro investimento em sistema de esgotamento público, em 1994.
Ao iniciar o projeto, 45% da população utiliza fossas "que exercem mal a função de fossa negra e 36% das residências lançam os dejetos diretamente nas ruas e em pequenas valas a céu aberto". Tal precariedade tende a aumentar, ameaçando a saúde dos habitantes de toda a bacia. Os mais atingidos são os 200 assentamentos espontâneos, representando 70% de sua população, com grau de pobreza extrema. O relato de quatro outras experiências em Vitória, São Paulo, Cubatão e Curitiba (1) marca a distância entre as práticas modernizadoras e aquelas que envolvem real progresso.
Os projetos que abordam as questões da regularização fundiária, habitação e participação popular remetem às teses mais conhecidas da chamada "questão urbana brasileira", resumidas com precisão por E. Maricato: "O tratamento da questão urbana no Brasil combina uma visão burocrática, cartorial, com um pragmatismo exacerbado".
A substituição das clássicas questões de habitação, saúde e educação pelo insano problema do transporte público indica que, diante das novas relações econômicas e urbanas, a mobilidade tornou-se a demanda mais incisiva das camadas mais carentes da população. Os dois projetos que desafiam a questão do transporte público e do trânsito reforçam a antiga tese: grandes interesses econômicos têm sido um efetivo impedimento para a implementação de políticas municipais nessa área. Embora a questão remonte aos anos 30, pelo menos nas metrópoles, as políticas de transporte público assumidas como prioridade social são ainda relativamente novas. A deterioração do transporte público e um agravamento contínuo do tráfego viraram um problema crucial em quase todas as escalas urbanas.
Assim como ocorre com o conceito de "espaço público", consagrado como questão maior no seu momento mais crítico, a noção de "mobilidade", hoje um fator decisivo de qualidade de vida urbana, ganha força, no momento em que os elementos que a garantem -transporte público e trânsito- estão mais comprometidos. Embora o impacto de sua precariedade seja mais violento entre os mais pobres, com nenhum poder de "localizar-se melhor" no interior da cidade, toda a população é atingida e vive 1/3 do seu dia aprisionada nos congestionamentos medidos em quilômetros.
A experiência desenvolvida em Santo André mostra a impropriedade e o erro de deixar para a iniciativa privada funções que envolvem pesadamente o interesse coletivo. Um dos municípios mais importantes da metrópole, parte integrante do mais poderoso parque industrial brasileiro, Santo André viveu até 1989 sem uma Secretaria de Transporte. A inexistência de uma empresa pública de transporte coletivo levou a cidade a viver precariamente até 1990. Hoje, quando a retirada do poder público do gerenciamento dos serviços urbanos é vista como "solução", em Santo André uma equipe enfrenta o problema do transporte público tomando o rumo oposto.
É acertada a decisão de acrescentar a experiência desenvolvida em Santos, pois não há como negar que os menores de rua se tornaram, no Brasil contemporâneo, uma questão urbana. Fechando o livro, a experiência premiada de Fortaleza, o "Mutirão 50", conjuga as duas palavras-fetiche dos últimos cinco anos: parceria e participação. Com três programas voltados para as questões sociais, em Fortaleza, realizou-se uma verdadeira experiência alternativa: passar da luta pela moradia à produção e gestão social de trechos da cidade.
Ponto por ponto, essas "respostas" são o oposto absoluto das "realizações" apresentadas nas campanhas eleitorais mencionadas acima, onde o condottiere é um competente publicitário com compromisso zero com a informação. Lendo de "peito aberto" esse livro exemplar, examinando as imagens que ilustram os textos, ora retratando a crueza dos problemas, ora mostrando a sociedade em ação, podemos pensar que estamos diante de uma nova fase nas políticas urbanas no Brasil.
Os novos rumos traçados pelo poder federal, sobretudo a estabilidade econômica, são seguramente um fator crucial para as políticas públicas desenvolvidas em pequena escala. Inúmeros relatos falam da dificuldade de prever gastos e estabelecer orçamentos, considerados verdadeiros exercícios de futurologia. É portanto de se lamentar que uma publicação de final de 1996, momento em que a estabilidade econômica já está consolidada, não tenha incluído uma linha sobre o significado dessa mudança fundamental.
Não fosse pelas dificuldades que os textos retratam, poderíamos pensar que esse conjunto de experiências já tem a força dos processos em andamento e que já se opõe às práticas urbanas convencionais, funcionando como o indispensável antídoto de que falávamos antes. A leitura do livro consolida a tese segundo a qual as principais dificuldades enfrentadas pelas cidades brasileiras não são de ordem técnica ou mesmo econômica, são antes de ordem política.

Nota:
1. "Preservação do Manguezal" (Vitória); "Saneamento da Bacia do Guarapiranga" (São Paulo); "Controle de Riscos Decorrentes de Desastres Naturais na Serra do Mar" (Cubatão); "Programa de Saneamento da Região Metropolitana" (Curitiba).

Regina M. Prosperi Meyer é arquiteta, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (USP) e colaboradora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

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