São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Cidades e capitalismo

ERMÍNIA MARICATO

O vocabulário mudou e alguns conceitos também, mas este livro dá continuidade a uma temática que atraiu muitos nos anos 80: "poder local e movimentos sociais". Ainda que nem sempre leve em conta a bibliografia desenvolvida anteriormente, a presente coletânea tem interesse porque incorpora alguns conceitos da pós-modernidade. O ambiente no qual se inserem os temas já não é o mesmo. O papel do Estado mudou: a descentralização, a fragmentação, a flexibilização, a emergência de novos atores são alguns dos novos traços consensuais.
"Organizações locais" e "redes" são paradigmas sobre os quais se sustentam diversos textos, às vezes enriquecendo as reflexões precedentes (caso de E. Enriquez), outras perdendo-se num tratamento funcionalista e reificado desses termos (caso de "Análise de Redes: Uma Contribuição aos Estudos Organizacionais", de E. Loiola e S. Moura).
Sobre o novo papel das cidades e sua gestão, no quadro da reestruturação produtiva mundial, há dois capítulos que apresentam um interessante contraste.
Com o título "As Cidades e o Planejamento Estratégico: Uma Reflexão Européia e Latino-Americana", J. Borja apresenta sua receita -plano estratégico- para que uma cidade vença a competitividade decorrente da internacionalização do mercado.
Há três pressupostos, sem os quais não se garante a eficácia desses planos: devem prever ações e medidas a serem implantadas de imediato, seduzir seus cidadãos para a participação e defesa da proposta e ser precedidos de uma reforma de gestão, política e legal. O governo local, enquanto promotor do plano em parceria com a sociedade, é também um articulador das potencialidades e sinergias dos inúmeros parceiros e atores.
O planejamento estratégico toma o lugar do planejamento modernista, criticado pelo excesso de regulamentação homogeneizadora. Mas... como é que ficam as cidades que nem chegaram ao modernismo? (Considerando o uso e a ocupação do solo, é discutível que alguma cidade expressiva no Brasil possa ostentar essa condição.) Neste salve-se quem puder, que é a competição entre as cidades no novo cenário mundial, como ficam aquelas que não são competitivas ou estratégicas?
O texto "Gestão Local no Nordeste do Brasil: A Busca de Novos Paradigmas", de B. A. S. M. Fontes e outros professores da Universidade Federal de Pernambuco, contrasta com a receita de Borja, exatamente porque trata de casos concretos de cidades ou municípios nordestinos, que encontram dificuldade ao ensaiar gestões participativas com parceiros que complementam a esfera da representação institucional. O contexto é o da descentralização, privatização e políticas compensatórias. Os fatores que dificultam a implementação de propostas bem-intencionadas soam familiares diante dos paradigmas que estruturam a sociedade brasileira: o Poder Executivo tem forte influência sobre o Legislativo e o Judiciário; a estrutura fundiária agrária impõe desigualdades e hierarquização acentuadas; a cultura política é baseada na sujeição e passividade.
A abordagem teórica das organizações sociais tem duas boas contribuições: do professor E. Enriquez, da Universidade de Paris 7, e do professor T. R. Villasante, da Universidade Complutense (Madri). A precisão de conceitos e método, que falta em alguns dos capítulos da coletânea, está presente no texto claro e conciso de Enriquez. Um conceito muito utilizado no livro recebe aqui sua definição: "Uma organização é, ao mesmo tempo, um sistema cultural, um sistema simbólico e um sistema imaginário". Referindo-se aos sistemas simbólicos e imaginários, Enriquez lembra aspectos frequentemente ignorados pela militância de esquerda: "O imaginário ilusório corresponde à formação, pela organização, de uma imagem global de si própria que é sempre de sedução e segurança. (...) O imaginário motor, ao contrário, é um imaginário dinâmico, inventivo. Sua presença permite que as pessoas envolvidas formulem projetos individuais ou coletivos, pensem nos meios a utilizar, dando-lhes o gosto e o desejo de realizá-los através da transformação do mundo exterior".
Enriquez alerta que "uma organização nunca está sozinha". A afirmação de seus projetos é uma tarefa complexa, na medida em que tem de se envolver com a multiplicidade de organizações e culturas e estabelecer relações com "redes de aliança" e "redes de rejeição".
Dentre os textos que abordam os movimentos sociais, destaca-se "Gestão, Cultura e Leadership - O Caso de Três Organizações Afro-Baianas", de M. Dantas, da Universidade Federal da Bahia. O texto abrange organizações que refletem três momentos diferentes da evolução destas: Apaches do Tororó, Ilê- Ayê e Olodum. As duas últimas têm claro engajamento político-ideológico. Da primeira à última, cresce a capacidade de gestão e manejo dos conflitos, bem como o sucesso junto ao mercado consumidor de produção cultural. É o Olodum que apresenta uma estrutura moderna de holding com diversidade de realizações, aliando "conteúdo histórico-cultural, produção artística e capacidade empresarial". Apesar das diferenças, a figura do líder, definida pelo autor como "liderança estruturante", é central em todas as organizações.
A coletânea apresenta ainda outros sete textos. Dentre eles, destacamos "Fortaleza entre Apocalípticos e Integrados: Imagens da Cidade e Pacto Social Urbano", de L. M. de Gondim, uma bem-humorada referência ao livro de Umberto Eco. Para Gondim, as visões urbanísticas predominantes em Fortaleza podem ser definidas por dois pólos: enquanto os apocalípticos (os intelectuais, os críticos, a esquerda) "sobrevivem confeccionando teorias sobre a decadência", o outro pólo, "os integrados (os governantes, as forças mais à direita) preferem operar, produzir e emitir suas mensagens cotidianamente", produzindo a imagem de Fortaleza veiculada na novela da Globo. A saída, preconizada pela autora e pouco desenvolvida no texto, seria "um projeto coletivo que poderia ser chamado de pacto social urbano".
Merece destaque ainda "O Orçamento Participativo da Prefeitura Municipal de Porto Alegre", de J. Giacomoni, no qual a famosa experiência aparece bem detalhada em seu processo.
É impossível comentar aqui o conjunto dos textos, aliás muito desigual, pois alguns carecem de maturidade. Outro problema é a dispersão, coisa muito frequente em coletâneas. Alguns dos capítulos guardam uma articulação frouxa com o tema central. O próprio título do livro não esclarece bem qual é o eixo da coletânea.
É louvável, entretanto, que a maior parte dos textos brasileiros deixe o circuito Rio-São Paulo, enfocando experiências nordestinas. Nesse sentido, a coletânea traz novidades e compensa o esforço de Tânia Fischer.

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