São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Mulher de Campion não é lady de James

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Henry James (1843-1916) está para a ficção como Walt Whitman para a poesia norte-americana: é o escritor central, em torno de quem tudo se altera, no passado como no futuro.
"A Portrait of a Lady", de 1881, é seu terceiro grande estudo sobre o caráter americano se descobrindo a si mesmo em confronto com a Europa; e o primeiro grande romance, escrito com plena consciência do fato.
Transfigurado em imagens de cinema por Jane Campion -com um título em português que transforma a "lady" na pouco jamesiana "mulher"- o livro deve ganhar muitos novos leitores, o que já justifica a adaptação, e é o que de melhor se pode dizer sobre o filme.
"Ninguém jamais teve uma visão tão segura e permanente, e acima de tudo tão natural do que cada um de nós requer e cada um é capaz de fazer, no sentido da aspiração e da independência pessoal." São palavras de Henry James sobre Emerson; mas poderiam ser de Emerson sobre Henry James.
Mais do que Jane Austen ou George Eliot, ele traduz a vida moral com um sentido extraordinário do drama e comédia dos afetos. A "psicologia", para ele, é um nome para aquilo que nos impede de descartar fatos, experiências, pessoas.
E a literatura é um modo de preservar ações e personagens, livres de "vagas descrições de juízo", cumprindo, se possível, as promessas da autodescoberta. Essa ética elevada se manifesta num dos estilos mais preciosos da história da literatura, onde "cada palavra é importante; cada toque, significativo".
Transformar literatura em cinema é sempre um problema: um romance não é só uma história e a questão é encontrar, em imagens, um equivalente sugestivo da música verbal do escritor.
Seria mesquinho não reconhecer o cuidado da diretora Jane Campion em recriar, com luz, cor e ritmo, a intraduzível arte do inglês de ser instigante: um apego sistemático ao "close-up", como se a superfície de um rosto pudesse, afinal, nos mostrar o que tem por trás, mesmo e especialmente quando está mentindo.
Problemas maiores começam a surgir quando a diretora abandona esses enormes olhos e bocas, Nicole Kidman e Barbara Hershey e John Malkovich falando e se olhando num universo paralelo, quase desencarnado, da vida das paixões.
Nenhum diretor até hoje conseguiu sustentar a integridade e fineza de percepção de James; e Jane Campion está muito longe de ser a primeira.
Melodrama moderno
"O Retrato de uma Mulher" vai deslizando perigosamente para uma retórica de fina vulgaridade com o passar do tempo, até se trair em tons de melodrama moderno no final (que não é o fim do livro).
A desilusão é tanto maior porque Henry James tem um interesse sincero pela melodrama -mas um melodrama reativado por dentro, uma intensificação do sentimento falso e da situação estereotipada, que nos leva a verdadeiros suplícios do inferno, embora com a devida dose cômica. E comédia, com certeza, é uma coisa que falta neste filme que se leva sempre tão profundamente a sério.
A impressão final é a de uma produção Merchant-Ivory de saias, uma ambiciosa história de assédio matrimonial em fins do século passado, com as esperadas concessões ao que a diretora chama "público de cinema": os sonhos eróticos da heroína Isabel Archer, em linguagem de pseudo-cinema mudo, são particularmente despropositados para um leitor de James, verdadeiro mestre na arte de manter a sexualidade à distância, sem perder jamais o pulso do erótico.
Tudo no filme acaba contaminado pelo falso chique, a marca registrada de uma diretora que jamais perde a chance de se mostrar mais inteligente do que seus admiradores.
Isabel Archer
Como já disse Harold Bloom, talvez não haja outra figura feminina por quem os intelectuais modernos possam se apaixonar mais do que por Isabel Archer.
Ela é a grande inventora de si mesma, a heroína da "autoconfiança", uma americana que vem sofrer sua educação sentimental na Europa milenar e corrupta. Nicole Kidman se entrega ao papel com alguma coisa da "espontaneidade moral" de que falava o próprio James sobre Isabel.
Mas uma das glórias do livro é a transformação gradual por que ela vai passar, num casamento abominavelmente errado; e no filme, não há transição, e ela acaba presa demais a uma receita e seu contrário. Melhor está Barbara Hershey, como a mulher mais velha na vida do marido John Malkovich -que de sua parte parece fadado ao papel de vilão de "vaudeville". O "mal" em Henry James vai muito mais longe do que isso.
"O Retrato de uma Mulher" foi duramente criticado pela crítica internacional; não deve ter outro destino por aqui. É um "Ligações Perigosas" sem malícia e sem humor, e quase nenhuma originalidade.
A "lady" retratada por James talvez não seja outra, afinal, do que o próprio James como consciência da mulher, num mundo livre do ceticismo. Está muito longe dessa "mulher" de Jane Campion, afinal de contas tão limitada em suas resoluções e irresoluções.

Filme: O Retrato de uma Mulher
Produção: EUA, 1996
Direção: Jane Campion
Com: Nicole Kidman, Barbara Hershey, John malkovich
Estréia: hoje, nos cines Studio Alvorada 2, Lar Center 1, Aricanduva 5 e circuito

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