São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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Orquestras perdem personalidade, diz Nicolet

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

O flautista suíço Aurèle Nicolet, 71, é por si só um pedaço importante da história da música no século 20. Foi regido por Bruno Walter e Wilhelm Furtwaengler, estreou peças de música contemporânea e é um pedagogo de seu instrumento.
Ele estará se apresentando amanhã, na série Schubertíade, montada pela prefeitura no Teatro Paulo Eiró, em comemoração ao bicentenário de nascimento de Franz Schubert (1797-1828).
Em entrevista à Folha, Nicolet constata que a música sinfônica perdeu sua personalidade de interpretação. As grandes orquestras são cada vez mais parecidas umas às outras, o mesmo ocorrendo com maestros e compositores.
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Folha - Que diferencial há numa carreira iniciada com alguns dos "grandes" deste século?
Aurèle Nicolet - Comecei como músico de orquestra e tive a sorte de tocar com grandes maestros da velha geração, como Bruno Walter (1876-1962). Mas fui verdadeiramente iniciado por Hermann Scherchen (1891-1966), refugiado na Suíça durante a Guerra. Foi ele quem me mostrou as primeiras peças brasileiras para flauta.
Folha - Em que plano suas atividades lhe davam mais satisfação: na orquestra, como solista, ou como professor?
Nicolet - Desde muito moço consegui conciliar essas três formas de fazer música. Ao deixar de me apresentar com orquestras, passei a viajar como solista, tendo a oportunidade de me apresentar ao lado dos compositores mais importantes deste século.
Folha - A orquestra de Berlim não teria sido uma escola permanente, diante dos grandes maestros que por ela passaram?
Nicolet - Há cerca de 50 anos, um regente de uma grande orquestra era também uma grande personalidade, capaz de imprimir sua marca de maneira inequívoca em todas as interpretações. Como ele permanecia por décadas em seu posto, essa marca se acentuava, tornava a sonoridade da orquestra inconfundível.
Isso ocorria também nos Estados Unidos, em Cleveland com Georg Szell (1897-1970), em Chicago com Fritz Reiner (1888-1963).
Folha - E agora?
Nicolet - Agora é uma confusão ("un tourbillon"). As orquestras e os regentes perderam sua singularidade. Em dois acordes reconhecia-se antigamente se era Cleveland, Berlim ou Viena. Agora, o padrão técnico é excelente, mas a sonoridade se tornou anônima.
"Há 50 anos, o regente era capaz de imprimir sua marca; agora é uma confusão"
Folha - Isso ocorre só na música?
Nicolet - Infelizmente, não. Há algo em comum com toda a sociedade. Há um processo de homogeneização cultural.
Folha - Não haveria nenhum ganho paralelo a essa perda?
Nicolet - Ocorre na música algo semelhante à pintura. Se entrarmos numa exposição, reconheceremos imediatamente pintores dotados de uma assinatura: um Picasso, um Braque, um Kandinsky. Mas há hoje pintores que são "intercambiáveis". E há igualmente compositores intercambiáveis.
Folha - A seu ver, então, o empobrecimento é inegável.
Nicolet - Não estou certo disso. Eu apenas levanto a questão, para a qual não tenho resposta definitiva. Estamos vivendo numa época com questões sem respostas.
Folha - O sr. lamenta estar testemunhando este quadro cultural?
Nicolet - Não. O que devemos é ter uma visão de conjunto deste século, iniciado com Debussy, seguido da Escola de Viena, a seguir Boulez, Berio... Mas hoje não há um processo muito nítido. Não sabemos que tipo de música estará sendo feito dentro de alguns anos.
Folha - Além da contemporaneidade, o sr. também preserva um grande apego pelo barroco.
Nicolet - Há uma evolução enorme e recente na maneira de se ver o barroco.
Folha - É uma questão de mudança na maneira de tocar, com instrumentos e afinação de época?
Nicolet - Há aspectos positivos e negativos. Voltou-se à veracidade dos textos. Nossa sociedade é em parte restauradora. Ela é muito pouco inovadora.
Folha - Isso é bom ou é ruim?
Nicolet - Há progressos imensos, sobretudo na Inglaterra e na Holanda, no resgate sobretudo da música vocal. Mas há também um lado negativo desse processo, que se tornou para muitos dogmático: há seitas e dissidentes.
Folha - Quais são suas relações com os "chefes de seitas"?
Nicolet - São até agora excelentes. Mas minha opção é muito mais "moderna". Nossa audição está constituída por tudo aquilo que já ouvimos. Não podemos negar esse patrimônio cultural.
Folha - Foi alguma vez necessário para o sr. trocar seu instrumento, para se enquadrar numa determinada afinação?
Nicolet - Há certas tradições, mesmo com os instrumentos contemporâneos. Na Inglaterra, o lá (nota de afinação) é de 435 (hertz), nos Estados Unidos é de 440, em Berlim, 445. Em São Petesburgo é de 450. O instrumento é o mesmo, mas não o diapasão.

Concerto: Aurèle Nicolet (flauta) e Rossana Diniz (piano)
Quando: amanhã, dia 12, às 18h30
Onde: Teatro Paulo Eiró, av. Adolfo Pinheiro, 765, Santo Amaro (zona sul de São Paulo)
Ingresso: gratuito

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