São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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"Todos querem glamour", diz Galliano

DO "EL PAÍS"

Nascido em Gibraltar, de mãe espanhola, Juan Carlos Antonio Galiano Guillén -John Galliano para o mundo da moda- dirige uma das casas mais famosas do mundo, a maison Dior.
Sua provocadora coleção, assim como a de Alexandre McQueen -outro estilista britânico importado por Paris- cumpriram sua missão: estremecer as bases do mundo da moda. O que a multinacional que engloba Dior (mais Givenchy, Louis Vuitton, Chandon) buscava era que se voltasse a falar de Paris. E foi exatamente isso o que aconteceu.
A maison Dior fez uma revolução: 850 jornalistas de 40 países, 320 fotógrafos e 50 canais de televisão foram testemunhas. Paris começou a se movimentar quando o "selvagem inglês", como a imprensa francesa chama Galliano, chegou à maison Dior -depois de passar um ano com Givenchy- e mergulhou neste santuário que representa, junto com Chanel, a alta-costura por exceLência e que conserva todos os seus desenhos e vestidos desde 1947.
Todo esforço não foi feito para chamar a atenção da clientela da alta-costura, que é ridiculamente escassa. As mulheres elegantes que podiam ou queriam comprar modelos nas grandes "maisons" eram cerca de 20 mil em 1940, 2 mil nos anos 70 e atualmente não chegam a 300.
Não é necessário ser um gênio para ver que se trata de outra coisa: a alta-costura serve de chamariz. O prêt-à-porter e os acessórios, lenços, malas, bolsas e óculos são vendidos, ao que tudo indica, porque antes vimos nas revistas e na televisão um vestido de tule lilás com um bustiê prateado e umas flores simples na cintura.
John Galliano tem consciência de tudo isso: ele é o inventor do vestido lilás que agora repousa "na cabine secreta" da Casa Dior, na rua Montaigne.
Toda a obra de Galliano está aí, marcada por esse estilo tão pessoal, extremamente romântico, cheio de sensualidade e de ousadia.
A estrela da Maison Dior mora na Bastilha, de modo que é para lá que todos nos dirigimos. A casa do estilista parece um apartamento inglês sem pretensões.
No salão, ele perde o sapato ao tropeçar em um buraco do estrado, coberto por um carpete vermelho e um pedaço de tela que imita a pele de um tigre. Completam a decoração alguns puffs e algumas araras onde pendura a roupa da sua coleção. No segundo piso há uma pequena oficina de costura.
"Esta é a minha casa, a casa Galliano" diz ele uma e outra vez. Ele é baixo, magro e tem a bunda empinada como um dançarino de flamenco. A nota discordante são os olhos, cobertos por lentes de contato de um azul intenso.
*
Pergunta - O "The Independent" define você como um produto tipicamente inglês contemporâneo, fruto de determinadas circunstâncias sociais e de um modo de vida específico. É o sujeito que mora na multirracial área ao sul de Londres, nos bairros mais humildes; que cresceu no meio do desconcerto de um país entristecido que perdeu seu império, mas onde as camadas menos favorecidas da população ainda tinham acesso à escola, à educação.
John Galliano - Sim, sou um personagem assim, uma mistura de tudo isso. Mas também sou muito espanhol. E aqui acham que sou francês... Mas a verdade é que a minha mãe é espanhola e o meu pai...; eu sou britânico; Acho que sou um produto que acabou surgindo aqui, mas que veio de muito longe. O que eu quero dizer é que sempre estive em processo de formação, desde que nasci de uma mãe espanhola que me ensinou determinadas coisas e a quem vi se interessar por elas. Depois fomos morar em Londres, na zona sul e também fui influenciado pela cultura inglesa desses bairros e acabei adquirindo uma cultura muito britânica -mais britânica do que inglesa. A escola que frequentei quando criança era muito diferente da cultura que encontrei mais tarde na escola de arte de Saint Martin. Existe só em Londres, é importante e multidisciplinar. É um lugar aberto a todas as artes, onde há pessoas de todos os tipos e que fazem uma vasta gama de coisas: fotografia, arte, pintura, cinema.
Pergunta - Sem essa escola você também não seria o que é?
Galliano - Possivelmente... Essa escola se caracteriza pela mistura que integra. É muito estimulante encontrar todos os tipos de criadores. Até o local em que a escola se encontra, cheio de teatros, galerias de pintura e de fotografia, é um ambiente motivador.
Pergunta - Você foi a Saint Martin para aprender moda?
Galliano - Não. Eu tinha estudado estamparia têxtil. Gostava de desenhar, tinha talento para isso, e fui para Saint Martin porque lá havia um curso denominado "fundations" e que era um curso aberto para que os alunos pudessem se encontrar, porque permitia fazer e experimentar de tudo. Permitem pintar, esculpir, deixam você livre para fazer o que quer. Eu vinha de uma escola com uma disciplina muito rígida e me deparei com aquela liberdade maravilhosa. Era outro mundo. Ao terminar o curso não sabia o que queria fazer, nada estava claro para mim; a única coisa de que eu gostava mesmo era de desenhar e, mais especificamente, de desenhar mulheres. Então fiz um curso de quatro anos que tinha um pouco de tudo: idiomas, desenho, impressão. Quando estava no terceiro ano tivemos uma matéria denominada estilismo, e foi então que eu me descobri.
Pergunta - Enquanto isso ajudava seu pai, que é encanador.
Galliano - Sim, segurava o maçarico enquanto ele trabalhava. Para mim é uma coisa normal.
Pergunta - Você chega a fazer uma comparação entre o estilismo e o trabalho do encanador.
Galliano - Claro... a estrutura, tudo o que acontece sob o vestido, o corpete, todas essas coisas. Porque um vestido não se faz de repente, sempre existe um desenho e uma estrutura que o sustenta. É a mesma coisa que a água que percorre os canos por baixo da casa. As coisas foram muito bem pensadas para que ao abrir a torneira, a água possa fluir. O que se vê do vestido não é tudo o que foi inventado, há algo mais, e isso é a infra-estrutura: o "soutien gorge", o corpete, todas essas coisas que armam o vestido, que o compõem. Elas constituem um trabalho muito importante e algumas vezes muito difícil.
Pergunta - Li que uma de suas fontes de inspiração é o filme "Napoleão", de Abel Gance.
Galliano - Como fonte de inspiração utilizo os mercados, os clubes noturnos, Modigliani... Mas sim, esse é meu filme preferido; é um filme moderno, apesar de ter tantos anos. Tem seis horas de duração. A primeira vez que o vi, principalmente no momento em que Napoleão cai sobre a neve e levanta os olhos, fiquei fascinado.
Pergunta - Um criador de moda é alguém que inventa algo especial e que consegue impor essa invenção, essa moda, por se tratar de algo maravilhoso ou novo, ou porque é feita uma publicidade convincente, ou ainda porque acredita que a verdadeira inteligência de um estilista está em adivinhar o que as pessoas querem ou desejam em determinado momento?
Galliano - É tudo isso. Gostaria de acreditar que estou aqui para fazer vestidos e algumas vezes tenho a oportunidade ou a sorte de sentir o que as mulheres querem. Eu sei, porque posso senti-lo, quando uma mulher não quer mais vestir um vestido cinzento e sem corte. Eu sinto isso. Sei que elas querem maquiagem, glamour, se vestir e se pentear. Tenho a sorte de captar isso, e é isso que está acontecendo agora.
Pergunta - É necessário ter uma sensibilidade especial?
Galliano - Não se trata apenas da minha sensibilidade. A minha equipe é muito boa, muito jovem, é uma fonte de idéias e também me corrige; por exemplo: não faça isso, é muito literal. Trabalhamos em conjunto, com as cores e o corte.
Pergunta - Acredita que com a sua moda acontece o mesmo que com algumas novelas em que o escritor é capaz de definir o que ainda não existe, de fazer uma síntese, de expressar um sentimento que andava flutuando por aí e que, de repente, todo o mundo reconhece, compreende que existia mas não conseguia expressar?
Galliano - Isso é verdade, e acho que é a parte mais interessante do meu trabalho. Quero dizer, como existe a intuição, pode surgir uma surpresa, algo inesperado -algo desejado e que era apenas intuído. E então surge alguém que pode se adiantar um quarto de hora e oferecer às pessoas o que elas queriam mas ainda não tinham definido.
Pergunta - Quando Mary Quant criou a minissaia, não fez só isso. Encurtar a saia foi um gesto que mostrava o desejo de rebeldia dos jovens. Armani -seus paletós, a roupa masculina- coincide com a entrada das mulheres em funções de trabalho que antes eram somente ocupados por homens.
Galliano - Com Mary Quant aparece pela primeira vez um estilo de roupa exclusivamente dedicado à juventude. Antes dela os rapazes e as moças vestiam-se igual aos pais e às mães. E o exemplo de Armani é uma adaptação do terno do homem, só que mais feminino, mais livre. Foi o mesmo que fizeram Dior e Coco Chanel: vestir as mulheres modernas.
Pergunta - E agora a sua roupa surge da observação do tédio que nos rodeia.
Galliano - Sim, tivemos Armani demais. Sem brincadeira, este ponto é importante. Em 1984, quando saí da escola, era o grande momento de Armani, das roupas masculinas bem no gosto feminino. Todas as mulheres se vestiam dessa forma. Eu era um estudante e estava cansado disso. E por isso, porque estava cansado, e porque à minha volta via que todas as mulheres também estavam cansadas de se vestir assim, trouxe de volta o romantismo. Esse é o momento em que eu apresento a minha coleção da Revolução Francesa, que agora está aqui, em Paris. A revolução é uma idéia muito romântica e, além disso, fazer o contrária é algo que me seduz. Mas é apenas uma intuição, não é algo consciente. Porque se tivesse sido consciente, teria sido pouco mais do que uma fórmula, quer dizer, não significaria nada.
Pergunta - Em vez de desfiles, os parisienses tiveram que organizar um "music-hall" na alta-costura para chamar a atenção...
Galliano - Em primeiro lugar gostaria de dizer que o talento não tem nacionalidade. E, sem dúvida, a alta-costura vai mudar. O que antigamente entendíamos por alta-costura, atualmente não significa a mesma coisa e, principalmente, não será a mesma coisa no futuro. O mundo de hoje é o mundo da "multimídia", um mundo em que a alta-costura sofrerá grandes mudanças. Não será apenas um lugar onde se vestem as atrizes... Nesse sentido, eu estou aqui também para ajudar a vender a maquiagem e os óculos Dior. Todos querem um pouco de glamour, ter um pouco desse mundo de sonho. Isso é a novidade e nós estamos aqui para colocá-la ao seu alcance.
Pergunta - Então é verdade que as grandes coleções só são feitas para vender algumas malas?
Galliano - São roupas para serem vistas e admiradas. É algo valioso, é uma cultura. Concretamente eu também estou aqui para continuar a tradição da alta-costura. Tenho muito respeito pelo que fizeram Balenciaga e Dior. Estudo seu corte para aprender e também para fazer algo mais moderno. Se não conhecemos o trabalho dos que vieram antes de nós, não estaremos entre aqueles que farão o estilo do ano 2000.
Pergunta - Você acha que a roupa de alguns estilistas dá a impressão de ter sido feita para prejudicar as mulheres, como se eles as odiassem?
Galliano - O que posso dizer é que eu gosto das mulheres.
Pergunta - Seus babados estão relacionados com o flamenco?
Galliano - Na maison Galliano minha roupa é totalmente inspirada no flamenco. Mas o que você viu na Dior foi inspirado em monsieur Dior, que era famoso por fazer esse tipo de vestidos. Mas em minha maison os babados são baseados no flamenco.
Pergunta - Voltando ao que conversávamos anteriormente, fazer vestidos que ninguém vai usar pode ser um grande objetivo?
Galliano - Acho que todas as mulheres querem ficar bonitas, muito bonitas, e isso acontece hoje e acontecerá dentro de cem anos. Então, eu estou aqui para ajudá-las a conseguir este objetivo. A primeira vez que fiz um vestido cortado no viés todos me disseram: "Não é possível, não vai encontrar nenhuma fábrica que o confeccione, isso não tem futuro".
No entanto, esse é o tipo de vestido que todo mundo usa agora para sair à noite. O que eu estou querendo dizer é que os meus desfiles são apenas um convite. É como se eu dissesse: "Gostaria que a roupa fosse assim".
Depois, o trabalho do estilista é aceitar esse convite, ver o que cada mulher quer. Eu ofereço apenas uma amostra, que depois é modificada. O trabalho da alta-costura é mostrar o caminho, fazer um convite. Não sou um ditador.
Pergunta - Quando você se vestia com um paletó de smoking e com uma saia de seda, tratava-se de uma agressão consciente?
Galliano - Tenho a necessidade de me expressar através das roupas que uso, da mesma forma que qualquer outra pessoa. Gosto muito de roupas, e também gosto de vinho. Estar bem vestido é um prazer semelhante ao de comer uma boa "paella".
Vestir-se bem é uma arte que é necessário saber apreciar. Eu herdei isso da minha mãe, ela adorava se vestir bem. As roupas que eu crio têm esse espírito.

Tradução: Maria Carbajal

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