São Paulo, sexta-feira, 11 de abril de 1997
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A vitrine dos horrores de Diadema

PAULO SÉRGIO PINHEIRO

Sempre se espera que a um horror perpetrado pelas polícias militares no Brasil não se siga outro. O último, em 2/4, em duas fotos enormes na página 3 do "The New York Times", a primeira notícia sobre o Brasil durante todo este ano. Com estrago maior a PM de São Paulo não poderia ter contribuído para fraturar a nova imagem de comprometimento da sociedade e do Estado brasileiro com o Estado de Direito.
As cenas explícitas de corrupção, tortura e assassinato por um grupo de criminosos, usando a farda da Polícia Militar, ultrapassam tudo o que poderíamos imaginar na sucessão dos massacres de Carandiru, Eldorado do Carajás, Corumbiara e as execuções sumárias de suspeitos e criminosos.
Tem plena razão o governador Mário Covas: não há como garantir que essas cenas de violência policial explícita não se repitam. Mas vale a pena meditarmos sobre as práticas dessa gangue de policiais para tirarmos indicações do que pode ser feito para preveni-las.
Antes de mais nada, as reformas de emergência não podem ser mais atrasadas. Faz mais de 20 anos que a sociedade civil e, agora, o governo federal vêm alertando ser essencial que os crimes comuns dos policiais militares não continuem a ser julgados pela Justiça das PMs. Têm de ser apreciados pela Justiça comum, como é a prática das democracias e foi a tradição brasileira.
Além do julgamento, constitui um intolerável entulho autoritário que, em plena normalidade democrática, além de julgados pela Justiça Militar, esses crimes comuns sejam investigados por Inquéritos Policiais Militares, por amadores, às vezes bem-intencionados, mas sem nenhum acesso às técnicas da moderna investigação criminológica.
Em Eldorado do Carajás, o IPM era um coronel da engenharia, um escrivão e uma máquina de escrever manual. Quem deve investigar esses crimes, como quaisquer outros, são a Polícia Civil e o Ministério Público.
A aprovação pelo Congresso Nacional e a sanção pelo presidente Fernando Henrique Cardoso da lei que tipifica o crime de tortura, dias após a divulgação da fita com as cenas de Diadema, é um grande avanço na luta pelo Estado de Direito e pelos direitos humanos. Torturadores terão maior dificuldade para escapar das barras da lei, e as vítimas, menor dificuldade para obter uma reparação dos seus direitos.
Além desses dois projetos, o Congresso Nacional deve aprovar com igual urgência urgentíssima o projeto encaminhado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso que abre a possibilidade de o governo federal chamar a si a investigação de crimes que julgue lesivos aos direitos humanos, que o Estado brasileiro se comprometeu a respeitar.
Quem vai ter de responder, sem ser o responsável, na comunidade internacional, pelas fotos no "The New York Times" será um governo que tem assumido com decisão e firmeza a promoção e a proteção dos direitos humanos. Não é por acaso que esses três projetos constituem pilares decisivos do Programa Nacional de Direitos Humanos.
Além dessas reformas legais inadiáveis, outras lições devem ser tiradas dessas cenas. As polícias militares, em todo o Brasil, necessitam urgentemente ser "desmilitarizadas".
Ainda que concorde inteiramente com várias propostas de que o sistema policial brasileiro requer uma profunda reformulação, o mais imediato e realista é romper com a prática de um comando dual das duas polícias, a civil judiciária e a ostensiva militar. Quem comanda a polícia em cada Estado são o governo civil e o secretário de Segurança Pública, porque somente deve haver uma política de segurança pública. A atual dualidade de comandos é um absurdo e fonte de conflitos e incompetência crescentes.
É inacreditável que os horrores de Diadema não tenham sido informados imediatamente ao responsável pela polícia do Estado, que é o governador. Esse fato demonstra que sobrevivem nas polícias militares práticas de investigação paralela e clandestina incompatíveis com a transparência democrática.
É esse o momento de o governo federal e o ministro da Justiça sugerirem a todos os governadores extinguir os serviços paralelos de investigação e inteligência, os P2, que não estão submetidos a nenhum controle externo. Todos os serviços de investigação devem ser unificados, para evitar esbanjamento de recursos cada vez mais escassos.
Os abusos revelados também mostram que a eficiência da polícia e seu respeito pelos direitos do cidadão são mais bem assegurados em todas as polícias das democracias com a implementação de controles do cidadão sobre a execução da política de segurança. A experiência positiva de alguns conselhos de segurança, em São Paulo, deve ser ampliada e concretizada num conselho mais amplo e com mais poderes para monitorar as polícias.
Esses fatos mostram às escâncaras que providências cosméticas não servem mais. É necessário que o governo federal crie uma comissão de investigação e reflexão de alto nível, com participação da sociedade civil, para oferecer ao Poder Executivo linhas de ação e de reforma emergencial, já propostas no Programa Nacional de Direitos Humanos, para as unidades da Federação. Para que não tenhamos de continuar tentando remendar depois de mais outro crime por agentes do poder público.

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