São Paulo, quinta-feira, 17 de abril de 1997
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A privatização da Vale

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Afirma-se com frequência que estamos vivendo na "era da informação". Os extraordinários progressos no campo das telecomunicações e da informática estariam permitindo uma ampliação sem precedentes das possibilidades de propagar dados, imagens e opiniões em escala mundial.
Trata-se, infelizmente, de uma meia verdade. E, como disse o grande poeta inglês Alfred Tennyson, "a mentira que é meia verdade é a pior das mentiras".
Boa parte da informação que circula pelo mundo não chega propriamente a informar. Às vezes, até desinforma. Em geral, o ruído prevalece sobre a informação.
É difícil acompanhar até mesmo o que acontece no Brasil. Considerem, por exemplo, a questão da privatização da Vale do Rio Doce. Não é um assunto qualquer. O noticiário sobre a sua venda tem sido volumoso.
Não obstante, o cidadão comum, que tem todo o direito de saber o destino que será dado a uma parte fundamental do patrimônio público brasileiro, mas não tem informações privilegiadas ou tempo de examinar o assunto por conta própria, simplesmente não consegue ter acesso aos pontos fundamentais. Ou se desinteressa da questão ou passa a opinar com base em preconceitos ideológicos e políticos.
É um quadro deprimente. Afinal, a Vale é uma das poucas multinacionais brasileiras. Mesmo os adversários mais aguerridos das empresas estatais, como Roberto Campos, reconhecem que é uma empresa eficiente, que venceu no mercado internacional e passou a ser uma das principais mineradoras do mundo.
Há muitas questões que ainda não receberam esclarecimento adequado da parte do governo. A começar pela mais fundamental: por que se deseja vender a Vale? E mais especificamente: qual a destinação que se dará aos recursos resultantes da sua venda?
Esse último ponto praticamente não foi objeto de discussão pública, em parte porque a questão não está passando pelo Congresso.
A imensa maioria dos brasileiros que tentam acompanhar a venda da Vale pelos jornais ou pela televisão não faz a menor idéia do que vai acontecer. A propaganda governamental informa vagamente que o dinheiro será usado para "abater a dívida pública".
Em entrevista recente a "O Estado de S.Paulo", um dos diretores do Banco Central, Francisco Lopes, relatou que esse ponto foi objeto de divergências dentro do governo. Segundo ele, a solução a que se chegou -sabe-se lá como- foi um "meio-termo", um "acordo" entre as alas "desenvolvimentistas e fiscalistas" do governo.
Ai de nós. Estima-se que o governo federal poderá arrecadar, no leilão marcado para o final deste mês, cerca de R$ 3 bilhões. Por esse acordo, metade do dinheiro entrará no caixa do governo e será utilizada diretamente para "abater dívidas".
A outra metade será destinada a formar um fundo, no âmbito do BNDES, que concederá empréstimos ao setor privado para investimentos em infra-estrutura, estradas, energia elétrica e saneamento.
De acordo com o diretor do Banco Central, "esse fundo cobrará taxas de juro marginalmente menores do que as que o Tesouro e o Banco Central pagam quando emitem seus títulos". Serão empréstimos subsidiados, portanto, com perda para o governo.
Recorrendo (suponho) a fina ironia, Lopes declarou que essa solução foi a que permitiu conciliar as preocupações fiscais da ala "fiscalista" com o "anseio do lado desenvolvimentista" do governo.
Bem. Quanto ao impacto "fiscal", não se pode dizer que a entrada de R$ 1,5 bilhão seja suficiente para alterar o quadro do endividamento público.
Basta lembrar que, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, a dívida em títulos federais (exclusive papéis na carteira do BC) já aumentou de R$ 62 bilhões para R$ 181 bilhões, impulsionada por déficits públicos, pelos juros elevados, pela acumulação de reservas internacionais e por operações de socorro a bancos públicos e privados, Estados e outros setores. R$ 1,5 bilhão corresponde, portanto, a apenas 1,3% da dívida mobiliária adicional acumulada durante o atual governo.
Quanto à metade que vai para o fundo do BNDES, o benefício é mais duvidoso. A capacidade dos bancos estatais de avaliar riscos de crédito e de cobrar os empréstimos devidos é notoriamente deficiente, para dizer o mínimo.
É incrível que se decida privatizar uma empresa estruturada e eficiente como a Vale, com o argumento de que é preciso retirá-la do alcance dos políticos e dos interesses corporativos, para em seguida destinar metade dos recursos obtidos a um banco estatal, encarregando-o de conceder a grupos privados empréstimos subsidiados e de repagamento provavelmente problemático.
Evidentemente, na medida em que as ações da Vale forem vendidas a corporações estrangeiras, aumentará o influxo dos investimentos diretos que vêm cobrindo o déficit crescente do balanço de pagamentos em conta corrente.
Fecha-se, assim, o círculo do absurdo. Estão vendendo uma das principais empresas do país para ajudar a tapar os rombos produzidos pela política cambial do Plano Real.

E-mail: pnbjr@ibm.net

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