São Paulo, sábado, 19 de abril de 1997
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Leia a íntegra das cartas

Exmo Sr.
Dr. Fernando Henrique Cardoso
M.D. presidente da República
Palácio do Planalto
Senhor presidente,
Estou aqui falando em nome dos caminhantes da marcha nacional dos sem-terra. Estamos em quase 2.000 pessoas. Velhos, jovens e crianças. Homens e mulheres. Todos esperançosos.
Caminhamos mais de mil quilômetros, saindo de 15 Estados do Brasil. Mas por que resolvemos fazer tanto sacrifício?
Primeiro, porque acreditamos que somente haverá mudanças sociais no nosso país, com o povo se organizando e se mobilizando. O senhor sabe que nós não acreditamos em promessas de governo.
Segundo, porque queríamos conversar com a sociedade brasileira. Nos últimos meses, o seu governo, através de seus ministros e outros setores governamentais, vinha atacando nosso movimento, como se fôssemos um perigo para a sociedade. Como se tivéssemos culpa de sermos sem-terra. Só existe sem-terra, porque existe antes o latifúndio.
Quisemos dialogar com a sociedade e mostrar para nosso povo que o seu governo não está fazendo reforma agrária. Dizer que o problema social é muito mais sério do que a propaganda de seu governo na televisão. De que ocupamos terra improdutiva porque temos necessidade da terra e porque a Constituição Brasileira determina.
E a sociedade nos entendeu. Passamos por mais de 150 povoados e cidades. E o povo nos recebeu com carinho. Nos alimentou. Nos deu abrigo. E vimos que eles também falaram mal do seu governo. Não se iluda com as pesquisas de popularidade. Isso é igual a campanha de sabão em pó. As dificuldades que o povo está sofrendo, com o desemprego, a falta de atendimento de saúde, a falta de escola pública, são muito grandes. Não é verdade que o povo está comendo melhor. Nós vimos muita miséria por onde passamos.
Nesses 60 dias de caminhada, sofremos muito. Teve gente com pé inchado. Assadura. Muita gripe. Mas aprendemos muito.
Conhecemos melhor nossa realidade. Vimos, na prática, o que significa a solidariedade. Entre nós, e da gente com a população. Vimos que a vida tem valores muito mais importantes do que a vaidade de certos políticos. Do que a arrogância do latifúndio. Do que o poder do dinheiro dos ricaços.
E essa experiência vamos levar para o resto da vida.
Nessa caminhada, conversamos durante todo o tempo com o povo, por onde passamos. Fomos nas igrejas, nas prefeituras, nos colégios, nos campos de futebol. E a todos explicamos que seu governo não está fazendo reforma agrária. Falamos de quantos acampamentos há no Brasil. Da miséria no campo. Que o povo do campo está vindo para a cidade por falta de esperança. Explicamos que existe desemprego, por causa da política econômica.
Explicamos que o Poder Judiciário só funciona para os ricos. Que nós tivemos companheiros massacrados em Rondônia, há quase dois anos, e que completa um ano do massacre de Carajás, e que, até agora, não havia (sic) nenhum processo. E que tudo estava encaminhando para a impunidade.
E o povo também nos contava como está sofrendo com o desemprego. Nos contava de como os pequenos agricultores do lugar também não viam mais futuro na agricultura, que estavam se mudando pra cidade. Nos contavam das injustiças da polícia e do Poder Judiciário que ocorriam também em seu município.
Nos contaram de como os políticos prometem mil coisas nas campanhas e depois continua tudo igual. Vimos então que os problemas que estamos denunciando, da situação de nossos acampamentos e assentamentos, era igual em todos os lugares. E que as causas eram iguais.
Mas não viemos até aqui, caminhando, apenas para lhe contar da viagem. Nós somos representantes de dezenas de acampamentos e de muitos assentamentos. Lá em nossa base, temos muitos problemas concretos e urgentes que precisam ser resolvidos. E por isso viemos reclamar também com o senhor.
Na audiência que tivemos em maio do ano passado, o senhor se comprometeu que seu governo iria priorizar a solução de diversos problemas. Que ainda estão sem encaminhamentos.
Trazemos algumas propostas.
1) Queremos que seja resolvido, o mais breve possível, o assentamento de mais de 40 mil famílias que estão acampadas e os conflitos de terra.
2) Para que se acelere realmente a reforma agrária, que ela ataque o latifúndio, e comece a resolver o problema da maioria dos sem-terra. Precisamos assentar 500 mil famílias. Temos diversos estudos que mostram que é possível alcançar essa meta. Os recursos existem. Basta que o governo realmente queira priorizar.
3) O Incra, nos Estados, ainda fazem (sic) muita politicagem. Tem superintendente que mais atrapalha que ajuda. Falta dinheiro até para diária, para fazer vistoria. Mas sobra passagem aérea, quando o Incra quer trazer prefeitos para Brasília.
É preciso resolver essa falta de recursos e de uma vez por todas. E dar condições de ampliar os recursos humanos e materiais.
4) Havia o compromisso de aumentar o empréstimo de R$ 7.500 para R$ 10,5 mil por família do Procera. Não foi aumentado. E a maioria das famílias não recebeu Procera. Precisamos que seja aumentado, depende apenas do voto do Conselho Monetário e que seja liberado (sic) recursos imediatamente, tanto para as famílias assentadas nos anos anteriores, como nas novas.
Há necessidade de redefinir o volume de recursos total a ser liberado este ano, tanto para atender as famílias dos anos anteriores, como as que serão assentadas. Apenas para as anteriores, estimamos que precisaria mais de R$ 750 milhões.
5) É preciso recolher imediatamente e cobrar as dívidas, em terras, dos 1.200 maiores devedores do Banco do Brasil. E distribuí-las para reforma agrária.
6) O senhor tinha se comprometido a organizar uma linha de crédito especial para agroindústrias cooperativadas nos assentamentos. Até hoje não saiu.
7) O governo federal tem pedido a ajuda dos governos estaduais para diversas coisas. Pede para a PM fazer desarmamento nos acampamentos. Vão lá revistar nossas barracas e acampamentos, como se fôssemos bandidos. E o que encontraram? Ferramentas de trabalho. Mas não tivemos nenhuma notícia de mansão de fazendeiro sendo revistado (sic). A Constituição federal determina que o serviço secreto da PM, o tal P-2, atue apenas na própria polícia. Por que eles continuam se infiltrando, fazendo escutas telefônicas no MST?
Por que, presidente, os governos federais e estaduais somente citam o respeito à lei, quando ela é desfavorável aos pobres? Quando a lei é favorável aos pobres, ninguém exige seu cumprimento. Por que o senhor não pede para os governadores usarem a PM dentro da lei?
8) Não adianta o governo federal dizer que está fazendo sua parte nos processos que investigam os massacres. Nós sabemos que, se o governo priorizar, pode criar mecanismos de pressão que realmente consigam a punição dos responsáveis. Nós não queremos explicações de como está o processo. Isso nossos advogados também nos informam.
Nós e a sociedade queremos justiça. Punição exemplar.
9) Mobilizar sua base parlamentar para aprovar imediatamente os projetos de lei que agilizariam a reforma agrária, como o projeto que impede liminar de despejo, já aprovados pela Câmara e esperando no Senado.
Os projetos que impedem a cobrança de juros compensatórios e o projeto do senador Flaviano Mello que aperfeiçoa o processo de desapropriações.
O governo precisa ter a coragem de começar a discutir e alterar a legislação, para estabelecer um teto máximo para o tamanho das propriedades rurais. A sociedade não aceita mais que existam áreas, com extensões enormes, e mal aproveitadas.
10) O ministro prometeu, por exemplo, que, em 60 dias, faria a vistoria em 500 mil hectares do Pontal. E desapropriaria todas as (propriedades) que fossem improdutivas. O prazo vence dia 24 próximo. Estaremos esperando ansiosos o resultado, acampados aqui em Brasília.
Como o senhor vê, nós estamos pedindo muito pouco. Pedimos justiça. Mas esperamos que o governo funcione. Trabalhe. Seja rápido. Problemas sociais não se resolve com promessas ou discursos. Ou resolve mesmo ou eles só aumentam.
Senhor presidente, essas são nossas preocupações e nossas propostas concretas que o governo federal deveria adotar imediatamente, se realmente quiser fazer a reforma agrária.
Muito obrigado

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