São Paulo, sábado, 19 de abril de 1997
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Livro ilumina o feminino

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Já se vão quase cinco décadas desde que Simone de Beauvoir pôs o dedo na ferida.
Em 1949, a filósofa francesa publicou "O Segundo Sexo", célebre tratado em que ousou dizer o indizível: as mulheres, até aquele momento, não tinham história.
Careciam de passado porque os olhos dos historiadores enxergavam apenas as conquistas e os conflitos masculinos.
Sem um espelho para se mirar, a auto-estima de meninas, moças e senhoras sucumbia. O feminino não se orgulhava de si mesmo.
Pensando em "iluminar as sombras que ainda resistem", a editora Contexto e a Unesp (Universidade Estadual Paulista) estão lançando, no dia 29, o livro "História das Mulheres no Brasil".
O catatau de 678 páginas reúne cerca de cem ilustrações e 20 artigos -19 assinados por pesquisadores e um pela escritora Lygia Fagundes Telles. É uma empreitada pioneira, com vocação para obra de referência.
"O volume, como indica o título, pretende revelar o que permaneceu e o que mudou no papel feminino durante os últimos 500 anos", define o historiador Jaime Pinsky, idealizador do projeto e proprietário da Contexto.
Entre os articulistas, há pesquisadores de 12 universidades, incluindo as de São Paulo (USP, Unesp e PUC), a de Campinas (Unicamp), a de Brasília (UnB) e as federais fluminense, do Paraná, e do Rio Grande do Sul.
Os ensaios, sem jargões acadêmicos, abordam diversos temas: as índias tupinambás nos séculos 16 e 17, a sedução e o lesbianismo no período colonial, as trabalhadoras no Brasil urbano e as relações da psiquiatria com a feminilidade.
Um ponto de vista permeia todos os textos: o de que nem sempre as mulheres aceitaram o papel de vítimas. Embora não negue a repressão que sofreram (e sofrem), o livro procura relativizá-la.
"Mergulhado em opressões, o 'sexo frágil' nunca se esquivou de burlar, negociar, trair, matar. Para se proteger, muitas vezes as mulheres lançaram mão justamente daquelas características tidas como inferiores -o talento na cozinha, a sensualidade, a intimidade com o mundo místico", explica a historiadora da USP Mary del Priore, que coordena o projeto e já defendeu tese de doutorado sobre a condição feminina no século 18.
Um dos ensaios conta, por exemplo, que um paulistano se descobriu traído em 1780 e repreendeu duramente a companheira adúltera. Ela, então, o ameaçou com "arte diabólica e feitiçaria".
Pouco depois, o marido caiu doente. Relatos da época informam que a mulher "usou de embustes e superstições, e chegou a confessar que dera a beber ao esposo o seu próprio mênstruo para o enlouquecer e, da mesma sorte, vidro moído, a fim de o matar".
Outra contribuição do livro é a de mostrar que o trabalho remunerado feminino já existia no Brasil colonial.
"As brasileiras, desde aquela época, contribuíam para a sobrevivência material da família, costurando ou vendendo doces", diz Mary. "Só que o trabalho, por ser doméstico, aparecia pouco."
Foi no final do século passado, quando o país deu início à industrialização, que as mulheres arrumaram empregos fora de casa, em fábricas, lojas e escolas.
O livro também demonstra como a imagem feminina se alterou com o decorrer do tempo.
Até o século 18, a sociedade valorizava o ideal da "santa mãezinha" -a brasileira casta, que pouco saía às ruas e mal sabia ler.
No século 19, o estereótipo se aburguesou. A mulher precisava aliar à castidade e à parcimônia o papel de boa anfitriã: deveria recitar poemas, tocar piano, entreter os convidados da casa (leia os dez mandamentos à direita). Começava, assim, a se converter em capital simbólico do marido -fardo que, de certo modo, carrega até hoje.

Livro: "História das Mulheres no Brasil"
Coordenação: Mary del Priore
Lançamento: Contexto/Unesp
Quanto: R$ 75 (678 págs.)

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