São Paulo, sábado, 19 de abril de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O homem desperdiçado

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Roma já entrou em horário de verão, minha filha que mora lá esqueceu o fuso do Rio e me telefona com uma hora de antecedência. Acordo mais cedo, os jornais nem chegaram ainda, a empregada me serve o café e vou à varanda olhar o dia que nasce sobre a Lagoa.
Quando havia Mila e Títi, era uma festa sair com elas, o ar gostoso ainda molhado pela noite entrando em nossos focinhos. Os olhinhos delas brilhavam, eu era feliz e sabia.
Meu mundo ficou menor. E acordando com o fuso de Roma ficou uma hora mais comprido. Vejo o sol batendo, oblíquo, mas não dissimulado, na formidável nudez da pedra que sustenta o Cristo Redentor, este nem está aí para mais (ou menos) uma hora na eternidade de seus braços estendidos.
O problema é meu -aliás, como todos os problemas, que só são problemas porque são meus. Sem nada o que fazer, não tenho sequer o discutível consolo daquelas revistas atrasadas que os consultórios colocam à disposição dos que esperam. Melhor mesmo olhar a Lagoa, que começa a ficar mais bonita nessa época do ano, os barcos de regata, com a cor dos violinos, cortando as águas iluminadas. Quando os remos sobem, gosto de ver o sol batendo nas pás encharcadas.
Há um dia pela frente, mas é como se não houvesse. Tenho essa coisa espantosa que é uma hora a mais, hora que não pedi, tempo de que não chego a precisar. Um condenado à forca gostaria de uma hora a mais? Se fosse esse o meu caso, certamente pediria que apressassem tudo, apreciaria até uma hora de menos.
A idéia da forca não combina com o dia que nasce, com a Lagoa que parece toda minha e só não é minha exclusivamente porque tenho de reparti-la com o sol, com os barcos na cor dos violinos.
Deixo a varanda e me sinto inútil e desperdiçado. Nem Mila nem Títi me esperam para passear ao sol. Pelo contrário: chegaram os jornais -como tudo fica feio de repente.

Texto Anterior: FHC, arrogância e náufragos
Próximo Texto: A assembléia da CNBB
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.