São Paulo, terça-feira, 22 de abril de 1997
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Servidor é ser pré-histórico

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Servidores públicos são seres literalmente pré-históricos. Surgiram com os primeiros reis, muito antes, portanto, da invenção da escrita. Sempre foram vistos ou com um certo desprezo ou através da pompa do título que ostentavam, dependendo do espectador.
No mundo clássico, foi Roma que mais desenvolveu o sistema de serviço público, que contava com intermináveis degraus hierárquicos e uma burocracia razoavelmente eficiente. Com a queda do Império Romano do Ocidente, em 476, essa estrutura desapareceu na Europa.
O mais longevo dos sistemas de recrutamento de servidores públicos foi sem dúvida o chinês, que teve início em 206 a.C. e, com algumas modificações, subsistiu até o ano de 1912 de nossa era. Candidatos a um cargo público passavam por rigorosos exames escritos (a relação candidato-vaga chegou a atingir mais de 100 para 1), e o apaniguamento era evitado por meio de um sistema de números que garantia o anonimato, além de os testes passarem por três examinadores diferentes.
Voltando à Europa, de cuja estrutura o sistema brasileiro é tributário, a carreira de serviço público, de início, não se diferenciava a do serviço ao rei. Os principais cargos eram os de mordomo (responsável pela adega), ecônomo (que se encarregava de organizar os banquetes), camarista (que efetuava pagamentos a partir do cofre instalado nos aposentos reais) e chanceler (que escrevia e selava as cartas do monarca).
A partir do século 13, quando (pelo menos na Inglaterra) a divisão entre negócios públicos e do rei começa a ficar mais nítida, esses cargos adaptaram-se aos novos tempos ou tornaram-se sinecuras ou simplesmente desapareceram.
Surgiram assim os departamentos de Justiça (ligado ao chanceler) do Tesouro (com origem no camarista) e os conselhos reais (formados por nobres indicados pelos monarcas). Essas novas estruturas, que, com o tempo, acabaram se espalhando pelo restante da Europa, exigiam mais gente para administrá-las. Aí está a gênese do moderno funcionalismo público e com ela os problemas ligados à estabilidade, indicações, promoções e favoritismos.
Embora na maioria dos países não houvesse uma estabilidade legal, o funcionário uma vez indicado para ocupar os médios e baixos escalões, raramente, tinha de abandonar o emprego. Suas principais queixas eram em torno da impossibilidade de ascender na carreira sem um bom apadrinhamento. Acabaram formando estruturas semelhantes a sindicatos. Criaram-se então comissões para periodicamente avaliar o desempenho dos agentes e recomendá-los ou não para a promoção.
Foi mais ou menos assim -dentro de vasta gama de variações- que a Europa em geral acabou por criar seus quadros de servidores públicos permanentes. Os exemplos contemporâneos são visíveis na Escola Nacional de Administração Pública francesa ou na Comissão de Serviço Civil britânica.
Os Estados Unidos da América, desde o seu surgimento, se rebelaram contra esse princípio de permanência. Segundo o presidente Jackson, as tarefas do servidor eram tão simples que qualquer pessoa inteligente poderia exercê-las. Como corolário, o maior número possível de cargos deveria ser preenchido por eleições. Mas, uma vez que não se pode votar para absolutamente todos os cargos, os eleitos nomeavam seus assessores. Ressurge o apadrinhamento, até que, em 1883, foi criada a Comissão de Serviço Civil para contratações mais transparentes em nível federal.
Essa brevíssima história dos servidores públicos mostra que, odiados ou respeitados, eles fazem parte dos estágios mais civilizados de todas as sociedades. Os mais importantes esforços internacionais têm sido no sentido de evitar ao máximo as ingerências políticas. Espera-se que a reforma em curso no Brasil caminhe nesse sentido, o que ainda está absolutamente por ser provado na prática.

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